Acompanhando o processo de discussões sobre a pauta de descriminalização do aborto até as doze semanas gestacionais, pasta que o Supremo Tribunal Federal reabriu no início de agosto, percebo quanto o feminino ainda se encontra submerso na definição de Foucault do domínio do estado e da medicina na subjetivação dos corpos como estratégia biopolítica de controle não só físico como moral.
O aborto visto como um tabu social é analisado prioritariamente através de um prisma moral reafirmador de que o direito das mulheres sobre seus corpos está nas mãos de uma sociedade egoísta. Sociedade esta que prega a defesa da vida acima de tudo, mas que fecha os olhos para os problemas reais daquelas que não podem arcar com os custos de uma maternidade compulsória.
Mesmo com a interrupção voluntária da gravidez sendo considerada juridicamente proibida no Brasil, uma quantidade significativa de mulheres que não podem e não querem seguir o caminho da maternidade a realizam através de diferentes processos.
Não é a ilegalidade que garante a inexistência da prática. Uma vez que para a interrupção é prevista a punição com pena de reclusão de um a quatro anos, o Estado brasileiro realmente estaria sendo justo ao colocar na cadeia uma mulher que optou por decidir sobre sua relação com a maternidade e sobre a quantidade de filhos que deseja ter? Outra questão se faz central nesse debate: em quais condições essas mulheres estão interrompendo o processo gestacional?
Fora os casos legalmente aceitos – abuso sexual, anencefalia e gravidez que põe em risco a vida da mãe –, uma vez que se trata de uma prática considerada ilegal, as mulheres que não têm condições financeiras para realizar o aborto em clínicas bem aparelhadas se veem reféns de métodos que podem colocar suas vidas em risco.
Por conta da reabertura da pasta que discute a descriminalização da interrupção gestacional, o Ministério da Saúde lançou um artigo que aborda a relação entre gravidez não desejada/planejada anual, percentuais de abortos e percentuais de mortes de mulheres decorrentes do agravamento do processo. De acordo com o documento, “[…] 1 em cada 5 mulheres brasileiras, até os 40 anos, já fez pelo menos um aborto. Em 2015, 503 mil mulheres, de 18 a 39 anos, interromperam voluntariamente a gestação e destas, aproximadamente, metade, [ ] 250 mil, precisaram buscar atendimento médico posterior e chegaram a ficar hospitalizadas.”1
O dado mais doloroso não é saber que uma pessoa que não tinha planos de engravidar ou que não tem condições de criar um filho resolveu abortar o embrião; mas é saber que todas as mulheres que realizam ou tentam realizar um aborto, ao procurar o serviço público, serão estigmatizadas, negligenciadas e, em muitos casos, não receberão atendimento adequado. Isso acontece porque, ao chegar ao pronto socorro, a ilegalidade do ato se torna a questão central. Assim, muitas mulheres sofrem agravamento do estado de saúde ou mesmo chegam a óbito por temerem revelar que fizeram um aborto. “O aborto é considerado um procedimento de baixa complexidade técnica. A morte de uma mulher em decorrência de um aborto seguro é rara. O que torna o aborto um risco, que pode acarretar complicações e até mesmo morte da mulher, é a sua realização de maneira insegura.”1
Estamos tratando de um problema de saúde pública e de direito de escolha. Só aqueles que estão envolvidos com a situação de uma gravidez indesejada são capazes de e únicos responsáveis por avaliar se existe ou não a possibilidade de levá-la em frente. Porque, no final das contas, é no máximo duas pessoas que se tornarão responsáveis por essa escolha. Nós devemos caminhar para uma maior equidade social e de melhores condições de vida e não para mais mortes e o agravamento das desigualdades.
A possibilidade de reduzir as mortes maternas existe e passa pelo reconhecimento do direito da mulher de decidir o que será mais viável para a sua vida. É preciso repensar o que é a maternidade encarando-a de frente, despida de toda a romantização e culpabilização sobre a mulher.
É difícil discutir a importância da vida da mulher e do seu protagonismo enquanto a sociedade ainda encara a maternidade como um peso social que todas as mulheres precisam carregar. A gravidez não é e não precisa ser um caminho sem volta. Aquelas que não querem ter um filho precisam ter a chance e a dignidade para poder abortar sem colocar em risco a sua própria vida.
Se a defesa soberana é aquela feita à vida isso parece ser esquecido quando uma quantidade considerável de mulheres morre por conta do não acesso a serviço de saúde que garanta dignidade. Nesta guerra, até então, a manutenção de um zigoto pareceu ter mais força do que a manutenção da vida de uma mulher. Que essas mulheres sejam protegidas. O Estado deve dizer sim à vida dessas mulheres.
A sociedade brasileira, que se diz, além de laica, um espaço de livre expressão – pelo menos quando convém – precisa colocar a mão na cabeça e pensar para além de suas crenças, para além de sua fé, para além de seus deuses e saber enxergar, mesmo que com pouca clareza, o outro.
Lutamos pelo direito à vida e à escolha das mulheres, por uma maternidade saudável e sobretudo desejada, sem romantização, como um desejo dos envolvidos e não como punição.