A VISÃO DO MORTO

– O que você quer ver, afinal?

A pergunta me pegou de surpresa; eu não tinha ideia. Fui franco.

– Não sei. O que você tem aí?

Leonel segue bisbilhotando a caixa de papelão.

– Difícil dizer… Não levaram nada… Bem, talvez o mais interessante seja isso aqui… – diz ele, erguendo uma câmera fotográfica visivelmente desgastada pelo tempo.

– Ele andava com uma câmera?

– Não só andava como morreu agarrado nela…

Aquilo era realmente estranho, levando-se em conta que a vítima era cega.

– Me deixe ver isso aí…

Ele me entrega o equipamento. A máquina, analógica, dispõe de um filme em seu interior.

– Vou ficar com esse material. – digo, devolvendo a câmera e guardando o filme em minha mochila.

– Então assina a ficha aí. Não quero encrenca depois.

– Fica tranquilo, não vai ter encrenca.

– Tu vai querer levar esse filme pra que?

– Pra um amigo meu revelar.

– Tá achando que vai encontrar alguma coisa aí, tipo o retrato do assassino?

– Quem sabe, né?… Falando sério, fiquei curioso em saber o que um cego fazia com uma máquina fotográfica numa praia à noite.

– Talvez quisesse fotografar as estrelas… – diz Leonel, soltando uma gargalhada.

– Foram quantos tiros mesmo? – pergunto.

– Seis. Quem fez isso fez pra valer.

– Você esteve na cena?

– Passei por lá. Tava de plantão.

– Tô vendo aqui que todos os tiros foram frontais…

– Calibre 22, arma de matar calango. O problema é que três tiros foram no rosto, enquanto um foi direto no coração. Os outros dois atingiram o tórax, um deles atravessando o pulmão. Sem chance.

– Pesado. Alguém já veio atrás de alguma coisa?

– Formalmente não. Teve só uma ligação, voz de mulher. Disse que ouviu uma notícia pelo rádio e queria saber mais detalhes.

– Deixou o nome?

– Não, nada. Desligou antes que eu pudesse puxar mais conversa.

– E a casa do cara?

– Tá lacrada. A chefia pediu pra ir lá de novo, conversar com os vizinhos, ver se tem alguma novidade.

– É, a coisa tá braba… Nem cego tá escapando…

– Então…

– É isso. Segura a onda aí que eu tô saindo. Dou notícias.

– Dê mesmo.

Juliano era um parceiro das antigas, da época do colégio. Fotógrafo, vivia de trampos e de uma pequena loja de compra e venda de equipamentos usados que conseguira abrir na parte velha da cidade.

– Você tá querendo saber o que tem aqui, é isso? – disse ele, segurando o filme que eu lhe entregara.

– Exatamente. Tem como revelar?

– Na hora. Quer dizer, só vou poder entregar amanhã. Pode ser?

– Pode.

– E aí, como é que você tá?

– Na mesma. Tentando salvar o mundo.

– Tem como salvar não, cumpade… A coisa tá cada vez pior…

– Verdade…

– Então… O negócio tá tão doido que outro dia me apareceu aqui um cego querendo revelar umas fotos que ele havia tirado. Veja só: um cego tirando fotos! Chegou aperreado, esbarrando em quase tudo, dizendo que precisava revelar as fotos com urgência, pois era questão de vida ou morte.

– Um cego? Você o conhecia?

– Nunca tinha visto antes.

– E as fotos? Você revelou?

– Não. Na hora eu não podia, tava cheio de serviço. Mas pelo jeito dele o negócio parecia boca quente.

– Ele não deixou nenhum contato?

– Nada. Por que? Ficou interessado na história?

– Tem certeza que ele não deixou nenhum contato?

– Tenho, cara. Nenhum.

– Como era o jeito dele?

– Virou interrogatório, foi?… Baixo, tipo um metro e sessenta, meio gordinho, pele branca, na faixa dos 50 anos, cabelo um pouco grisalho… Um cara bem comum, só que cego.

Romualdo Parente, filho único, morava sozinho. Cego de nascença, vivia da pensão deixada pelos pais. Os vizinhos disseram que era um homem pacato, de hábitos discretos, que interagia pouco com a comunidade.

Os poucos amigos encontrados revelaram que ele desenvolveu o interesse pela fotografia ainda na adolescência, depois de ouvir falar em um cego que tinha sido premiado num concurso.

No início acharam estranho, mas logo se acostumaram com sua figura rechonchuda e silenciosa a zanzar quase que diariamente pelas ruas do bairro, apontando a câmera para os lugares mais improváveis.

Adulto, os amigos rarearam, mas seu hobby de fotografar as ruas do bairro prosseguiu. Foi apenas depois da morte dos pais que essa rotina foi alterada, se reduzindo a duas ou três saídas por semana, sendo uma delas para fazer compras no pequeno supermercado do bairro, onde, segundo uma das atendentes, nunca deixava de comprar filmes para sua velha câmera.

Não se tem notícia de qualquer envolvimento sentimental em sua vida, tampouco de alguma desavença com terceiros. Não possuía débitos de nenhuma espécie e sua casa permanecia como na época em que seus pais eram vivos, limpa e organizada, algo que nos chamou a atenção, dado ser ele cego. Quem cuidava de tudo? Havia uma empregada, uma diarista?

Descobrimos que não; era ele quem cuidava de tudo.

Apesar de todos saberem da sua paixão pela fotografia, não existe registro de que alguém tenha visto alguma imagem feita por ele, tampouco encontramos algo referente a isso em sua casa, como quadros, retratos ou mesmo rolos de filmes usados; na prática, a única coisa que restou foi a câmera com a qual ele foi encontrado.

A descrição física feita pelo meu amigo batia com a do Romualdo Parente, mas não era possível afirmar que se tratava da mesma pessoa; infelizmente – e para nossa surpresa – os poucos retratos que revelavam sua fisionomia foram achados em seus documentos de identificação, feitos quando ele ainda era bem jovem, não havendo nenhuma imagem recente dele, cuja face havia sido destruída quando dos disparos fatais.

Foi pensando em todas essas coisas que caminhei pelas ruas do centro da cidade, em direção a loja do Juliano.

Para minha surpresa encontro um Juliano com expressão angustiada, como nunca vi antes. Sou direto.

– E aí, amigo, algum problema?

– Sim, muitos. Entraram na loja durante a madrugada. Levaram praticamente todos os equipamentos… Prejuízo grande. – diz ele, apontando para as prateleiras vazias.

– Você já deu parte? Posso cuidar disso imediatamente! – reajo, tentando animá-lo de alguma forma.

– Me perdoe a sinceridade, mas isso não vai adiantar nada. Você e eu sabemos que esse tipo de crime não tem como recuperar. É material pequeno, de fácil repasse. Os caras desovam logo. O prejuízo, infelizmente, vai ficar todo comigo.

Ele estava certo, mas insisti mesmo assim.

– Não, a gente pode correr atrás. Deixe comigo.

– Você quem sabe, mas não vou perder meu tempo indo fazer B.O.

Visivelmente abatido, ele se senta em uma cadeira atrás do balcão.

– E tem mais. – diz ele. – Os caras levaram tudo que tava no laboratório também, o que inclui o filme que você deixou. Lamento dizer, mas aquele material já era.

Desta feita sou eu que me deixo abater; aquele filme era, talvez, a única oportunidade de descobrir o que tinha acontecido na noite em que Romualdo Parente foi morto.

– Bom, de qualquer forma vou ligar pra uma rapaziada aqui. Vamos ver o que pode ser feito.

Falara aquilo mais pela força do hábito, pois sabia que tudo estava perdido, principalmente o filme, que com certeza seria descartado na primeira oportunidade, “até porque era um filme usado”, pensei.

Foi então que me ocorreu outro pensamento: “E se a intenção de quem entrou foi justamente roubar o filme?” Fosse isso, o furto dos equipamentos seria apenas um despiste, algo que serviria para desviar a atenção do que realmente importava.

Esse pensamento, obviamente, ficou apenas comigo, pois não queria ser alvo da chacota de ninguém; no mínimo iriam dizer que eu estava vendo filme demais, o que seria uma ironia. Melhor esquecer.

As semanas seguintes foram de muita investigação nas redondezas, praticamente com esforço redobrado, pois eu me sentia na obrigação de ajudar meu amigo Juliano, mesmo porque me considerava relativamente culpado pelo acontecido.

Chegamos a prender alguns vagabundos, mas, como temíamos, não avançamos em nada na localização dos equipamentos roubados. Foi frustrante, pois Juliano, não tendo como arcar com o prejuízo, foi obrigado a fechar a loja pouco tempo depois, o que lamentei profundamente.

O caso do Romualdo Parente, sem progressos, acabou caindo no esquecimento de todos, menos no meu, que ainda sigo investigando, principalmente depois de ter descoberto que ele possuía uma irmã por parte de pai.

Detalhe: a irmã de Romualdo, que atende pelo nome de Janete, é fotógrafa profissional.

 

Duarte Dias

Cineasta, roteirista, curador audiovisual, fotógrafo e compositor, Duarte Dias foi premiado em vários festivais de música no Ceará, tendo lançado seu primeiro álbum autoral, "Jardim do Invento", em fevereiro de 2019. Com premiações em festivais de cinema no Brasil e no exterior, ocupa a cadeira de n° 36 da Academia Cearense de Cinema. Idealizador e diretor geral do FestFilmes - Festival do Audiovisual Luso Afro Brasileiro, e ex Coordenador de Política Audiovisual da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (2016-2019), desempenha, desde 2015, as funções de programador e curador do Cinema do Cineteatro São Luiz e Assessor de Políticas Culturais do Instituto Dragão do Mar (IDM), vinculado a Secult-CE.

Mais do autor

Duarte Dias

Cineasta, roteirista, curador audiovisual, fotógrafo e compositor, Duarte Dias foi premiado em vários festivais de música no Ceará, tendo lançado seu primeiro álbum autoral, "Jardim do Invento", em fevereiro de 2019. Com premiações em festivais de cinema no Brasil e no exterior, ocupa a cadeira de n° 36 da Academia Cearense de Cinema. Idealizador e diretor geral do FestFilmes - Festival do Audiovisual Luso Afro Brasileiro, e ex Coordenador de Política Audiovisual da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (2016-2019), desempenha, desde 2015, as funções de programador e curador do Cinema do Cineteatro São Luiz e Assessor de Políticas Culturais do Instituto Dragão do Mar (IDM), vinculado a Secult-CE.