A VIRADA COLETIVA – Onde Está o Centésimo Indivíduo? por Rafael Silva

No início dos anos 80 cientistas japoneses realizaram uma longa pesquisa comportamental com macacos. Observaram mudanças súbitas e substantivas, e o mais surpreendente ocorreu quando o comportamento de um primata passou a influenciar os demais, igualmente isolados em outras ilhas. Para o biólogo Rupert Sheldrake1 está é a base hipotética da presença de um campo mórfico.

Os cientistas perceberam que a consolidação da virada coletiva foi definida no exato momento em que o centésimo macaco assumiu a postura diferenciada apresentada ao seu conjunto. Feito leite que ferve, o movimento surge e vai ganhando força até atingir um nível sem volta provocando mudanças substantivas. Esse processo induz novos arquétipos sociais dialeticamente modificando a memória cumulativa.

Na lógica estatística, a centésima parte de um corpo pode induzir a um aspecto menos importante e até desprezível. Experimente dizer a alguém que ela possui 0,01% de chances sobre alguma coisa? A crença nos resultados parece diminuir consideravelmente.

Contudo, podemos afirmar – com certo grau de certeza – que a história está repleta de centésimos indivíduos. A Índia antiga assistiu a virada coletiva quando um jovem viu além das cortinas. Nazaré da Galileia, também apresentou seu centésimo indivíduo. A Europa medieval observou silentemente o centésimo indivíduo surgir de uma pitoresca cidadela chamada Assis. O que chama atenção é o modo como esses indivíduos irromperam outros comportamentos. Poderíamos citar exemplos na arte, na cultura, na política, mas vamos deixar esse exercício para o leitor.

Atualmente a pergunta é: onde está o centésimo indivíduo entre nós? Com esse pano de fundo proponho um breve olhar sobre os desafios que a história nos impõe em duas categorias: a economia e a política.

Quanto à primeira, é necessário nos atermos à etimologia da palavra oikos. O que ela nos indica? Bem diferente do que se imagina, sua tradução livre significa “cuidar da casa2”. Isso nos exige olhar para a casa comum no sentido mais amplo. Aqui um imperativo se impõe, será que estamos cuidando da casa comum quando vemos aumentar o número de pessoas em situação de fome3?

Amartya Sen4 atesta que apenas 2,5% do orçamento bélico mundial seriam suficientes para eliminar a miséria5 global. Os autores sustentam que os remédios capazes de evitar a morte prematura de crianças não ultrapassam a conta dos centavos, atestando o real conceito de (des)envolvimento, ou seja: aquilo que nega o envolvimento entre as pessoas.6 Uma rápida análise sobre a Teoria da Ajuda promovida pela OCDE7 indica a insensatez dessa prática. Há ali uma clara rede de pilhagem econômica reprodutora da mesma lógica colonial.

Esses processos agudizam a desigualdade denunciada no relatório da OXFAM 20188. O relato da instituição inglesa atesta na prática aquilo que Atikinson9 chama de características da desigualdade, especialmente quanto está assume movimentos verticais e horizontais. O primeiro indica a existência de 82% da riqueza mundial nas mãos de apenas 2.043 afortunados. É assustador imaginar que isso represente a mesma riqueza de 3,7 bilhões de pessoas. Como consequência, o segundo tipo de desigualdade indica a relação socialmente desestruturada ao apresentar que a cada 10 bilionários, 09 são homens. O que revela a permanência da lógica patriarcal entre nós.

No Brasil, segundo a mesma fonte, o patrimônio dos super-rico cresceu 13 vezes. O rendimento dos 10% mais ricos subiu 6,5% em detrimento dos 50% mais pobres que viram seus recursos caírem 3,5%. O rendimento do 1% mais rico cresceu 36 vezes, enquanto os negros e as mulheres ganharam menos do que homens brancos. Agora 15 milhões de pessoas figuram entre os mais pobres10.

A Europa segue a tendência. Segundo a OXFAM11 portuguesa, se as medidas de austeridade continuar nesse ritmo o Reino Unido irá dobrar sua taxa de pobreza – saindo de 2,5 para 5% – e ao final desse decênio quase 15 milhões de novos pobres se somarão aos 120 milhões que abriram as estatísticas europeias em 2011. Em Portugal, o GINI não sofre alterações substantivas desde 200812 mesmo seu Produto Interno Bruto ter se mostrado positivo para os últimos quatro anos13. Se as forças políticas não agirem para distribuir a riqueza não haverá relação positiva entre aumento do crescimento e fim da desigualdade.

Eis aí é à chave para o segundo ponto da nossa reflexão: a dimensão política. O critério avaliativo reside no axioma em que a antítese da pobreza não é a produção de riqueza, mas justiça social. A política, portanto é o locus desse processo14 o que induz a dimensão mais ampla da palavra, capaz de garantir abrigo a sua interface sócio- institucional e comunitária.

Isso nos inclina a olhar para a função da democracia que age feito um lubrificante da política. O alcance da primeira será tanto maior quanto for o sucesso da segunda. Apropriar-se desse aroma pode representar o caminho mais viscoso para a liberdade.

Estou convencido de que o centésimo indivíduo precisa agir com urgência na economia e na política. Como? Movimentando-se para desfazer à lógica do colonialismo que opera na economia capitalista. Resistir ao moinho de gastar gente15 operacionalizado pela globalização do mercado que na prática sempre é local.

Minha esperança é reestabelecida quando vejo alguém entonando a voz contra o patriarcado e seus déspotas, reinventando à ciranda da vida. Quando “alguns” muitos ajudam na resistência dos povos indígenas ou quando topam organizar as lutas por dignidade das maiorias sociais.

Não arrisco dizer quem é o centésimo indivíduo. Torço para que não esteja distante. Será que não está na lavadeira de roupa que utiliza métodos simples para poupar água? Ou na justa medida praticada pelo pequeno comerciante? Não estaria na liderança comunitária que rompe com a corrupção? Ou na juventude que teima em viver? Poderá estar no agente público promotor do bem comum? Pode residir no ancião que ensina ou na criança que aprende? Quiçá no professor comprometido ou no intelectual orgânico que se faz mais um? Talvez…

Certamente, está em quem faz da arte a expressão de vida. Quem pratica gentileza, aqui, ali ou no trânsito. Quem nega veneno para produzir alimento. Está na justa distribuição da riqueza que evita a pobreza, nas referências e nas biografias dos comuns. Está naquele (a) que sabe reconhecer o valor do amor, independente dos seus adjetivos – hetero, homo ou trans – em quem busca a justa medida enquanto expressão da economia e da política.

Aí reside o centésimo individuo que vai consolidar a virada coletiva.

Por Rafael dos Santos da Silva

Universidade Federal do Ceará – UFC

Universidade de Coimbra – FEUC/CES

1 Rupert Sheldrake (1981) A New Science of Life: The Hypothesis of Formative Causation,

2 ATENEU (2014) Introdução a Economia – Silva, Rafael dos Santos – Fortaleza – Ce.

 

3 FAO, 2017 – http://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/en/c/1037611/

 

4 Economista Indiano ganhador do Premio Nobel de Economia em 1999.

 

5 Sen, A. Kliksberg, B. (2010) As Pessoas em Primeiro Lugar – A ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. Cia da Letras

 

6 Ver – Silva (2014) (DES)Envolvimento e a Promoção das Liberdades Básicas. Ateneu – Fortaleza – CE.

 

7 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

 

8 OXFAM – https://www.oxfam.org.br/noticias/super-ricos-estao-ficando-com-quase-toda-riqueza-as-custas-de-bilhoes-de-pessoas

 

9 Atkinson,A. (2016) DESIGUALDADE – O que fazer? Bertrand Editora – Lisboa Portugal.

 

10 OXFAM 2018, www.oxfam.org.br/noticias/super-ricos-estao-ficando-com-quase-toda-riqueza-as-custas-de-bilhoes-de-pessoas

 

11 www.oxfam.org/es/tags/portugal

 

12 Fontes/Entidades: Eurostat (até 2000) | INE (a partir de 2001), PORDATA
Última actualização: 2018-05-07 – www.pordata.pt/Portugal/%C3%8Dndice+de+Gini+(percentagem)-2166

 

13
 Fontes/Entidades: INE, INE | BP, PORDATA
Última actualização: 2018-09-24 – www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+crescimento+real+do+PIB-2298

14

 O sentido Weberiano do termo induz a ação racional do homem.

15

 Ver Darcy Ribeiro na obra “Povo Brasileiro”.

Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.

Mais do autor

Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.