A realidade segundo Madame Lutgarde

Madame Lutgarde abriu-me os olhos para o Brasil que ninguém quer enxergar

“Política tem esta desvantagem: de vez em quando o sujeito vai preso em nome da liberdade”, Stanislaw Ponte Preta

Dizia Emília, personagem magistral de Monteiro Lobato: “Se a mentira é para o bem, viva a mentira!” Paulo Elpídio de Menezes Neto

A hipocrisia na política vale tanto quanto uma fake news permitida ou tolerada. A fake news é a verdade vista ao modo de cada um. É uma verdade provisória.


Aquele
8 de janeiro parecia um dia comum em Brasília. Uma semana apenas de governo não conferira aos seus agentes experiência suficiente para prever catástrofes e desastres ideológicos que rondam, de há muito, este planeta. Temos escapado das suas consequências, no Brasil,  por  afortunado acaso. Afinal, tudo inspirava festa naquele dia, celebrações e e alegriaFindara uma eleição eivada de dúvidas e certezas e a contabilidade cívica das perdas e ganhos enchiam os corações de uns e de tristeza outros. Os novos agentes públicos, entretanto, traziam saudades mais do que experiência dos governos de que haviam participado em passado recente. E ainda não estavam prontos para encarnar as virtudes de um novo governo popular, prestes a ter começo na usinagem de uma pós-modernidade politica anunciada. .

A derrota do “genocida” era um feito memorável que os historiadores saberão explicar para a posteridade. Para aos contemporâneos, bastaria a criatividade da mídia para atender os anseios de uma realidade conveniente. Afinal, o que escapa ao olhar das pessoas é como se não existisse. A new media segue parâmetros lógicos poderosos.  A omissão do fato ou a seleção corretiva de eventos que possam levar a dúvida ao espírito das pessoas honestas assumem a importância da forma a que recorrem os comentaristas e editores para livrá-las dos tormentos da mentira e das angústia que a verdade lhes traz.

Todo governo novo, mal recuperado das refregas eleitorais e dos compromissos assumidos pelas boas causas defendidas, torna-se presa fácil dos perigos da governabilidade. Como saber que uma multidão de criaturas, que se chamaria, outrora, de “povo”, decidira preencher o domingo com um programa imprevisível em Brasília, até então? Homens. mulheres, crianças e idosos põem-se a caminho, como romeiros palmilhavam as trilhas de Juazeiro e Santiago de Compostela, com o propósito de quebrar e destruir relíquias e peças de arte? E por que se incorporavam a esta marcha, desprovidos de facões armas, como é prática corrente entre camponeses sem-terra, já acostumados a essas manifestações cívicas? Como descobrir essas tramoias quando o país se entregava à alegria da chegada de novos tempos anunciados? De onde arrastaram tanta maldade e a empregaram contra o patrimônio artístico público? Por que teriam sido consideradas justas e adequadas as táticas que induziram os sem-terra à destruição de pesquisas genéticas de empresas agrárias e arrancar plantações condenadas no altar-mor ideológico – e voltaram-se contra o patrimônio imemorial das instituições postas em sossego no Planalto Central? Justamente em um domingo, quando a família brasileira está entregue a reiteradas celebrações, pelas praias, recolhidas obsequiosamente aos estádios de futebol, em rituais religiosos, e nos restaurantes e nos bares.

No Brasil, todos  descansam aos domingos: os serviços de segurança, as guardas palacianas recolhem-se honestamente às casernas, aportarias fecham as suas portas inexpugnáveis de vidro, blindadas contra os arrufos populares, o comércio de bandeiras e de outros artefatos próprios a insurgências e a outras algaravias urbanas encerram as suas vendas e todos esperam desfrutar de um dia de merecida paz.

A politica, no Brasil, entra em recesso aos domingos: os seus atores, por gosto ou vocação, visitam as suas bases de quinta-feira a domingo. Este ritual assemelha-se a uma espécie de   desobriga cujo  objetivo se concretiza no fortalecimento de antigas lealdades – o rito eleitoral ancestral para a conquista de votos. Quem haveria de imaginar que terroristas surgissem, encapuzados e aguerridos, com o propósito impatriótico de destruir o acervo insubstituível dos valores republicanos e pôr em sobressalto a república? E se valessem desse recolhimento dos parlamentares entre os seus provedores de intenções e votos? Brasília transforma-se, aos domingos, em lugar de recolhimento, no qual funcionam apenas os serviços essenciais. Historicamente, a politica não se inclui nesta pauta de urgências urbanas.

As instituições, por sua vez, não exercem, naquele lugar, a sua vocação aos domingos, nem em dias de guarda. Estão todas essas aparições vistosas do Estado — civis, militares ou judiciárias sob a proteção da Constituição e das forças  de segurança. Quando faltam as duas, em dias da semana ou aos domingos e dias de guarda,  a insegurança jurídica e a pública, a democracia e o Estado de direito, entram em piedoso recolhimento.

Dizia Carlos Lacerda que o SNI,  nos melhores dos seus dias e nos mais produtivos, não preparava o seu relatório das terças-feiras, embora o fizesse aos sábados e domingos. É que, por aqueles tempos distantes, os jornais não circulavam às segundas-feiras, os repórteres e editores entravam com relutância em recesso, era o dia em que a nação respirava, livre dos maus presságios. A tevê não ganhara a importância que desfruta hoje e, como não exigia conhecimentos da leitura e dos textos, graças à força das imagens,  nada acrescentava de novo para compreensão da realidade, a não ser os programas de Abelardo Barbosa, o Chacrinha.

Proust recorria à madame de Thèbes, sua amiga e confidente, para que ela lhe fizesse entender as situações e os fatos e a suas circunstâncias e os “gossips” comentados nas ruidosas noitadas do Ritz, em Paris. O boato e a ironia são o sal da terra, e ali se celebravam nas ausências dos interlocutores desprevenidos. A simples observação dos convivas e atores de cena não o satisfazia, não o esclarecia  o suficiente para extrair do que via  e ouvia o fato consistente, no qual estavam as melhores noitadas para conversar. Por essa razão, buscava a interpretação de alguém que lhe pudesse explica-la. Não foi por acaso que a “causerie” foi criada na França, o “plaîsir du bon mot” resuma a verve parisiense.

Estes fatos brasilienses e os rumos alternativos que seguem a vida política brasileira convenceram-me que me faltava um intérprete dos acontecimentos recentes, passados e dos futuros, tão imprevisíveis quanto improváveis.

Tive que inventar a minha madame de Thèbes. Recorri à madame Lutgarde, velha amiga aqui de casa, para que me explicasse porque o Brasil é o pais em que se transformou e não outra coisa, como poderia ter acontecido.

Pois bem. Neste episódio, cuja lembrança já se apresenta tão gasta, de uso quase imprestável, as minhas dúvidas encontram alento graças à  perspicácia de madame Lutgarde.

Por que uma multidão tão numerosa vai à luta, enrolada em vistosas bandeiras, quando poderia, como já lembrado, ter-se municiado de armas de fogo, instrumentos perfurantes, cortantes e de choque? E por que justamente em um domingo? Pode alguém imaginar — os parlamentares que o digam — um final de semana passado na praça dos Três Poderes, longe de Sobral, em Copacabana ou na Baixada Fluminense?

Faltou, note-se, caracterizar e nomear, com base e fundamento nas razões de direito apresentadas pelos oficiais da correição, o grau de belicosidade do ataque aos próprios do Estado e deste laudo extrair as evidências acusatórias.. Quem pegou em armas, quem olhou com curiosidade e espanto aquela algaravia atrevida, quem esboçou um esgar de medo, ou os que fugiram, às carreiras, daquela cena dantesca, em fuga desabalada diante do estoque de pistolas de pimenta malagueta com as quais as polícias militares foram equipadas, não sabia bem o quê fazer.

Viu-se, entretanto, que os manifestantes não possuíam experiência que se devesse temer nestas perigosas ações de assalto aos bens públicos. Faltava-lhes, como parece evidente, a expertise da aguerrida militância dos “sem-terra”, dos garimpeiros da Amazônia e das milícias urbanas, no ir-e-vir pacificador pelas comunidades e periferias urbanas. Aparentemente, sequer os  pastores da nossa consciência apareceram, tão solicitados andam pela escassez de fé nas criaturas, e, naturalmente,  chamados às  suas obrigações dominicais. Teriam imaginado estas criaturas de boa fé que iriam encontrar os prédios da praça dos Três Poderes regurgitando de servidores, altas patentes, parlamentares atrelados aos seus mandatos e togas esvoaçantes, armados de Vade Mecuns esclarecedores — e de porteiros, decididos a não permitirem excessos naquela vadiagem  dominical?

Madame Lutgarde, em nosso último encontro, avançou, entre conceitos e doutrinas políticas, algumas caídas em desuso, no Brasil, tais o bom senso e a razão, para, finalmente, propor interpretação condizente com o trágico quadro daquele fatídico 8 de janeiro.  Alguns chegaram a pensar em uma revolução: “mas em um domingo pela manhã? – ponderou prudentemente um dos expectadores do evento.

Do ponto de vista estratégico e tático, a insurreição lhe pareceu ter muito pouco inovado no quadro das manifestações ocorridas no Brasil, desde a heroica guerra da vacina  da febre-amarela, no Rio de Janeiro.

Consideradas as partes envolvidas, madame Lutgarde segredou-me, com aquela discrição próprias às mulheres de idade, que as paredes têm ouvidos e as forças da repressão estão sempre alertas aos deslizes dos incautos. Com cautela concluiu que, afinal, todos saíram ganhando —  e vitoriosos, cada um a seu modo

Os embandeirados mostraram a sua força e uma relativa vocação republicana. O governo acolheu, no colo, na primeira semana do seu noviciado, o prato feito de uma insólita rebelião fascista e antidemocrática, o desafio patriótico de lhe dar cabo. Valeu-lhe o álibi constitucional que lhe permitiria o contorno da Constituição e das garantias jurídicas, artifícios e virtudes cívicas já em desuso em muitos países desta amena vizinhança andina. A mídia fartou-se de exercitar o que melhor sabe operar, a dissimulação e a desconstrução dos fatos e da realidade. Tudo em nome das nossas mais distintas tradições republicanas, que outra razão não lhe poderia  ocorrer.

Por fim, a desídia dos serviços de informação e segurança foi compensada brilhantemente pelodispositivos carcerários da moderna politica de segurança instalada. E pelas tornozeleiras cidadãs, na quais passaram a encarnar-se os ideais republicanos inspiradores.

As vagas na Papuda, ou em armazéns ou lugares mal sabidos, receberam 1406 brasileiros-terroristas e lá a maioria ainda se encontra. Poucos sabem o que ainda fazem lá e começam perigosamente a suspeitar desta democracia que ministros togados pretendem inscrever na história do País. Quem constrói a  democracia, pensam desavisadamente os mais afoitos, embora mal informados, são o parlamento e o povo. 

Por  fim, lembrou, comovida, madame Lutgarde, o silencioso desfile de transportes coletivos no qual velhos e crianças acomodavam e escondiaa sua vergonha de serem presos com a mesma distinção reservada a Marcola, já removido em Brasília, pelos comandos onipresentes do PCC. E indagou-me, provocante, como são as mulheres inteligentes em tempos de guerra ou de paz: “A quem haveria de servir a ruptura constitucional, afinal?  Aos que pretendem governar com os apetrechos autoritários ou aos remanescentes, velhos democratas, que sonham com questões subalternas  como liberdade e respeito, consciência política e autoridade?

O alongamento do texto não há de privar-nos tornemos às virtudes patrióticas da mentira, presentes como já descobrira Maquiavel nas ações políticas dos homens e da mulheres. Madame Lutgarde aprecia a sutileza que banha, no Brasil, certas induções lógicas. Saídos divididos destas eleições recentes que não se fecham nunca, enfrentamos riscos e perigos que cercaram Ulysses, o de Ítaca, não o paulistano Itirapina.

Temerosos das suas consequências que a ninguém servem as revoluções, nem mesmo aos revolucionários, cuidamos do que sabemos fazer com distinção e dissimulação. A conciliação dos opostos, a convergência dos interesses, a redução dos impulsos da fé e da política, tudo pode aviar-se, desde que ninguém perca nos ajustes finais e todos creiam nas mentiras dosseus interlocutores. O consenso em política, como explicou madame Lutgarde, é um processo delicado, cercado de sutilezas verbais – e caro. Porém, é uma forma civilizada de ajuste e cooptação de favores e compromissos. Madame Lutgarde prometeu-me que voltaria ao assunto em uma próxima vez.

Não sei o que seria de mim, sem a lucidez de madame Lutgarde. Nem de Proust, mal comparando, sem o olhar atento e malicioso de madame de Thèbes.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

Mais do autor