Por que demorara tanto para percebê-lo? Seria por causa dos homens que se insinuavam toda vez que entregava salgados ou sopas dormidas no balcão da lanchonete? Era aquele ambiente sem respeito que fazia com que ela ignorasse a todos, inclusive o homem que agora lhe parecia tão especial? Como pôde ser tão cega?
Ele nunca se incomodou com a indiferença dela. Muito pelo contrário. Toda quinta-feira, quinze para as nove da manhã, chovesse ou fizesse sol, ele chegava e ocupava a primeira mesa à direita de quem entrava. E lá ficava até a hora do almoço. Depois ia para casa, dormir um pouco. Gostava de dormir.
Estava velho, era verdade – a memória vinha falhando continuamente -, mas desde que ela chegara, seis meses contados nos dedos, sua vida ganhara novo alento. Não sabia seu nome, nem de onde vinha, mas isso, de fato, não tinha a menor importância. Por enquanto, vê-la já lhe bastava.
Ela sabia que não fosse o incidente no início do mês, não teria reparado nele. Na ocasião ele tossia muito. Um freguês, vizinho de mesa, queixou-se ao garçom. “Esse tuberculoso vai acabar cuspindo no meu prato!”, berrara o homem. Exigiu que o retirassem dali. O garçom foi ter com ele, que pediu mais uma cerveja. Foi atendido. Após alguns goles a tosse parou, isso para voltar em seguida, mais forte do que antes. Vendo que nenhuma providência seria tomada, o freguês queixoso ficou furioso. Visivelmente transtornado e gritando palavrões contra o garçom, retirou-se prometendo nunca mais por os pés naquela espelunca.
Nesse dia, apesar da tosse desagradável e da confusão, ela achou-o bonito. Não era jovem como ela, mas ainda parecia guardar algum vigor. Via isso na forma como ele caminhava; andar firme, equilibrado, de quem sabe o que quer. Mesmo quando ia ao banheiro, que vivia imundo. Já o vira queixar-se sobre isso com o proprietário. Mais de uma vez. Era quando ouvia sua voz, uma voz forte e imperiosa. O proprietário, visivelmente constrangido com a chamada, sempre pedia desculpas. Ela se sentia, de alguma maneira, vingada.
Sem saber, ela o fez mudar de hábitos. Passou a tomar banho nas manhãs das quintas-feiras, antes de ir para a lanchonete. Não que ele não gostasse de banho, mas há muito tempo só se asseava à noite. Adquirira o hábito depois que começou a trabalhar na pedreira. Foram vinte e sete anos de marretadas. Então, veio a crise econômica. Demitido, voltou para Fortaleza. Ninguém o reconheceu. Talvez por causa da barba branca. Ou das rugas. Ou mesmo porque não procurou ninguém. O fato é que sentia-se livre do débito que julgava ter com a justiça.
Já fazia muito tempo. Ele nunca soube o que aconteceu com a noiva. Talvez tivesse casado com outro. Ou fugido. Ou morrido, como o amante. De certa forma, ele também morrera. Perdera vinte e oito anos, cinco meses e treze dias de sua vida por conta daquelas facadas que o fizeram mudar de nome e lugar. Mas aquelas eram lembranças amargas. Não as queria mais.
Ela recebera o bilhete dele pouco antes da hora do almoço. O garçom lhe entregara. Ele pedia um encontro na praça, quinta-feira, às seis da noite. De lá, iriam a uma sessão no velho cinema. Ele não disse qual era o filme. Ela lembrou que em sua cidade natal não havia cinema, só casa de forró. Ela não sabia dançar, nunca aprendeu.
O trabalho de vigia não era agradável. Principalmente por não poder dormir. Mais um motivo para achar a quinta-feira especial: era seu dia – ou noite – de folga. Aquela quinta, no entanto, seria ainda mais especial do que as outras. Planejara tudo. Não a veria naquela manhã. Iria encontrá-la somente à noite, depois do expediente. Esperaria na praça, em frente a lanchonete. Ela ficaria feliz ao vê-lo. E haveria de sentir-se bem com ele. Com certeza.
Apesar do chá de cidreira que tomara, ela continuava tensa. Agora, era tudo com Deus. Que ele fizesse do seu destino o que achasse por bem fazer. Isto é, desde que não a fizesse casar. Isso ela não queria e não aceitava. Se bem que ele era um homem bonito. Mais velho, mas bonito. Talvez até desse certo. Ia pensar no assunto. Mas deixar de trabalhar para viver às custas de homem, isso nunca. Manteria seu emprego na lanchonete. Podia não ser um emprego maravilhoso, mas era estável. Freguesia, pelo menos, não faltava. O povo do centro da cidade gostava de comer porcaria.
Ele sentou-se no banco. Olhou ao redor. A praça estava cheia de velhos iguais a ele. E mendigos. Ficou incomodado. Um garoto pediu para engraxar-lhe os sapatos. Rabugento, disse não. O garoto se foi. Ele olhou para o relógio fixado na estrutura de ferro que ocupava o centro da praça. Cinco para as seis da noite. Passou as mãos no cabelo ralo. Estava ansioso. Sentia-se jovem.
Ela surgiu por detrás da banca de revista. O vestido amarelo a deixava mais bonita. Ele levantou-se. Não sabia o que fazer. Ela caminhou até o peitoril que cercava a estrutura de ferro e parou. Ele aproximou-se lentamente pelo lado oposto e também parou. Ela não o viu. Ele viu quando um homem aproximou-se dela e tocou-lhe o ombro. Ela virou-se e retribuiu o toque com um grande sorriso. “Ele veio!”, ela pensou. Ele viu quando ela abraçou o homem com ternura e, de mãos dadas, saíram em direção ao velho cinema.
Ele continuou parado junto ao peitoril. Reconhecera o homem. Como ele, também era um freqüentador da lanchonete. E costumava tossir muito. Um dia, ao ter um ataque violento de tosse, aquele homem quase cuspira em seu prato. Ele reclamara o fato junto ao garçom. Esse, ao invés de tomar providências, servira uma cerveja ao “tuberculoso”. Ele ficara revoltado com aquela desfeita do garçom. Saíra jurando nunca mais por os pés naquela espelunca. Devia ter cumprido a promessa.