A POPULAÇÃO DO RESIDENCIAL JOSÉ EUCLIDES RESISTE À REPRESSÃO DA OPERAÇÃO DOMUS

A violência de Estado no Brasil remete a uma história multissecular. Nosso país foi construído explorando brutalmente o trabalho escravo que forjou milhões de trabalhadores precários e supérfluos, sempre alvos das forças repressivas estatais. Essa repressão ganhou novos contornos após as duas décadas de ditadura militar. O que antes foi considerado luta contra os “subversivos” políticos assumiu, após a redemocratização, uma feição de guerra aos marginalizados. Trazer a reflexão sobre a violência de Estado por meio de seu aparato repressivo para os dias atuais exige que caracterizemos o cenário: ascensão do ideário ultraliberal autoritário e da política de austeridade cada vez mais disseminados, aumento das desigualdades sociais e ausência de instituições capazes de amortecer seus impactos negativos sobre setores mais vulneráveis da sociedade.

Como destacou o sociólogo francês Loïc Waqcant, é nesse contexto em que se verifica uma espécie de dispersão da “penalidade neoliberal” que visa, paradoxalmente, remediar com “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social, que produz pobreza e insegurança objetiva e subjetiva em todos os países em que se aplica. Alastra-se nas sociedades deste novo século o que denominou “ascensão do Estado Penal”. Ocorre então um processo de mudança na organização do mercado com readequações do Estado e suas políticas públicas, movimento em nada ligado a um suposto aumento da criminalidade. Assim, arremata nosso autor: a destruição deliberada do Estado Social e a consequente hipertrofia do Estado penal são dois processos concomitantes e complementares.

Será que a cidade de Fortaleza/CE está tão distante do diagnóstico traçado? Vejamos o que ocorreu em nossa periferia há uma semana. Três dias após a operação de repressão no Residencial José Euclides, no bairro Jangurussu, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social publicou, em seu sítio oficial, matéria intitulada “Conjunto habitacional José Euclides no Jangurussu recebe Operação Domus”, destacando que a ação “tem como objetivo assegurar o bem-estar dos moradores desses locais, verificar a existência de irregularidades e continuar o combate ao crime, proporcionando uma maior sensação de segurança na região”. O efetivo mobilizado contou com a Polícia Militar do Ceará (PMCE), a Polícia Civil do Ceará (PC-CE), o Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE), a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), a Enel Distribuição Ceará, o Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE), a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) e a Guarda Municipal de Fortaleza (GMF).

Peço às leitoras e leitores atenção especial para o que foi divulgado como balanço da operação. Segundo a matéria, toda essa mobilização resultou no corte de 26 pontos de energia pela Enel, 45 infrações expedidas com quatro apreensões de veículos. Após a fiscalização de 1.248 apartamentos foi constatada a “ausência de iluminação de emergência, extintores vencidos, saídas de emergência obstruídas e caixas de hidrantes sem materiais”. No entanto, nenhum desses problemas estruturais foi solucionado com a operação. Na prática, houve a mobilização de intenso aparato repressivo que atuou para gerar medo e constrangimento à população de um território que há muito lida com o abandono do poder público.

Como resposta, no dia 01/12, moradores do residencial se organizaram, através dos movimentos sociais e coletivos de juventude, para denunciar, com panelaço e passeata no interior do conjunto com intensa mobilização nas redes sociais, todo o abandono que sofrem há mais de cinco anos desde que as primeiras famílias lá foram habitar. Apontaram a falta de Código de Endereço Postal (CEP), de equipamentos públicos como creches, postos de saúde, Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), escolas e transporte escolar para as crianças. Cabe destacar que a Operação Domus já aconteceu em outros conjuntos habitacionais: Cidades Jardim I e II, Alameda das Palmeiras II e Vila do Mar III, Conjunto Rosalina, Residencial Bom Jardim, Residencial Sabiá, todos em Fortaleza; e Residencial Orgulho do Ceará II, em Pacatuba, além do Residencial Nova Caiçara, em Sobral. O que todos esses territórios têm em comum? Situam-se às margens das cidades, em territórios identificados como locus das desordens e da desesperança e onde vivem os corpos criminalizados, maiores vítimas da militarização das cidades.

Sabemos que a constituição da cidadania no Brasil não se deu de forma linear e/ou igualitária. Pelo contrário, a materialização do que chamamos de cidadania possui uma dupla face: por um lado, expressa dimensão universalista no sentido de incluir os indivíduos e grupos sociais no campo dos direitos formais, porém, por outro, mostra-se extremamente desigual na distribuição desses mesmos direitos no terreno social, gerando distinções a partir de critérios como educação, propriedade, raça, gênero, ocupação. Contra um clima generalizado de medo, criminalização dos pobres, apoio à violência policial e abandono do espaço público que verificamos em nossa cidade, os moradores do José Euclides insistem, com sua insurgência, na luta contra essas formas de violência e segregação socioespacial, afirmando-se como sujeitos coletivos capazes de reescrever suas histórias e transformar nossa cidade.

REFERÊNCIA

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

David Moreno Montenegro

Cientista Social, Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com Pós-Doutorado pelo Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe - IEALC, na Universidad de Buenos Aires (UBA). Professor de Sociologia do Instituto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) - Campus Fortaleza. Coordenador do Centro de Estudos Políticos e Sociais - CENTELHA/IFCE e Membro da Coordenação Estadual do MTST – CE.

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David Moreno Montenegro

Cientista Social, Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com Pós-Doutorado pelo Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe - IEALC, na Universidad de Buenos Aires (UBA). Professor de Sociologia do Instituto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) - Campus Fortaleza. Coordenador do Centro de Estudos Políticos e Sociais - CENTELHA/IFCE e Membro da Coordenação Estadual do MTST – CE.