“J´ai commence ma vie comme je la finirai, sans doute – au milieu des livres”, Jean-Paulo Sartre, Les Mots
Criado em meio aos livros, na convivência de doces afinidades intelectuais, no calor de uma família liberada de discriminações e preconceitos, mas submissa aos ideais de liberdade, animada pelo amor da controvérsia e da ilustração, no respeito pelos valores da justiça e da verdade, aprendi muito cedo que as descobertas e as revelações da inteligência, as aptidões legadas pelo Saber resultam tanto do talento que habita a alma dos eleitos e dos ungidos com o sopro da Percepção quanto do empenho diligente, que faz do conhecimento um processo contínuo de acumulação e de renovação de experiências espirituais.
O trabalho intelectual, no qual se distinguiu o homo sapiens sapiens no longo aprendizado da evolução, fundamenta-se na repetição ordenada de exercícios rotineiros, confunde-se com a transpiração do corpo na faina cotidiana da sobrevivência. A fagulha do gênio propaga-se pelo rastro deixado pelo obreiro aplicado, pelo artesão que recomeça, a cada novo dia, sua tarefa regular, como se não houvera interrompido na véspera.
É assim que o artista constrói sua obra, dos pequenos e pobres retalhos que se vão unindo e desenhando uma nova forma, tal qual o escultor cuja criatividade consiste, como a via Miguel Ângelo, na habilidade engenhosa de retirar da pedra bruta, a golpes precisos de cinzel, os volumes informes, com os quais se confundem os contornos dissimulados. O poeta elabora com as suas imagens, metáforas, fábulas e figuras, a tessitura, delicada ou veemente, terna ou combativa, da emoção, dessa paixão perdida que, para Jorge Borges “é uma forma de felicidade, talvez a melhor”. O historiador, servo fiel de Clio, investigador obsessivo do passado, interrogador exigente pela volúpia de “aprender coisas singulares”, é o expectador atento de Bloch, seduzido pelo grandioso “espetáculo das atividades humanas”, as mais que outras quaisquer, assim como a História, têm o condão de pender a imaginação dos homens. A obsessão da descoberta, a identificação das fontes, como a interpretação das causas, a revelação das “atitudes menos dominantes em uma época, a eleição dos temas de estudo, a preocupação da legitimidade do papel da pesquisa histórica, a dimensão do imediato, os silêncios significativos, a questão do método, enfim, constituem perspectivas seculares mas não autônomas, que se inter-relacionam e se interpenetram, na tarefa árdua da observação e da crítica a que se entrega o especialista da História. Como trabalhador intelectual que faz do documento, das fontes ab e dispersas o objeto de sua investigação, a matéria-prima na qual, entre certezas, convicções e dúvidas, o historiador tem, no seu ofício, desafio permanente do imponderável, do improvável, da limitação das informações requeridas, da parcialidade que impõe cautela e da autenticidade. Desafios gigantescos que reclamam disciplina estrita e perseverante, de consciência, a exemplo de Sísifo, transformado em herói, tornando-se mito trágico. Como na vida, entre os efêmeros, o herói esforça-se por empurrar enorme pedra e levá-la ao cume da montanha; e ao vê-la rolar, resvala a planície, recobra o ânimo e torna a empurrá-la encosta acima, para o escarpado. recomeçando cem vezes o mesmo percurso, o ombro nu sustentando o pesado volume. “No termo desse longo esforço, revela Albert Camus, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade se faz tão remota quanto incerta. Deixemos essa província controvertida da Filosofia para a História. Retenhamos, entretanto, a proposição como um marco referencial em torno do qual se desenvolve e se organiza a tarefa do historiador – das primeiras crônicas, dos registros e testemunhos, da recomposição da vida cotidiana, das sagas, das tradições, dos mitos e das crenças até sua destinação final, o público ao qual se dirige toda a produção histórica. A escola dos “Annales” valorizou, como Bloch o fez por toda a sua obra exponencial, a “interpretação por dentro” dos fatos da organização social. As legendas, os mitos e as fábulas representam um repositório inesgotável do qual se servem os pesquisadores. Afinal, explica Marc Bloch, o conhecimento de uma instituição decorre de uma estreita vinculação “às grandes correntes intelectuais, sentimentais e místicas da mentalidade contemporânea”. Na Idade Média, com os “troubadours”, com os relatos copiosos dos “fabliaux” e as gravuras d’Épínal, a vida cotidiana, a fábula, o mito e a imagem, sobretudo na tradição oral, conquanto não reproduzissem uma imagem fiel da sociedade da época, refletiam a mentalidade dominante entre ricos e pobres, senhores e servos. Essa tradição, registrada e reproduzida pela voz da oralidade, não passou certamente despercebida do pesquisador; ela contradiz, pelos fatos correntes que intenta recuperar, pela crítica social difusa da qual está impregnada, pelos movimentos sociais que se insinuam por entre as narrativas do “romanceiro”, a concepção de que cada homem é um homo clausus, a que alude Norbert Elias, qualificando como um “pequeno mundo em si mesmo, em total independência relativamente ao grande mundo exterior”, originado a “imagem do homem em geral. A esse homem “limitado”, contrapõe Georges Duby o domínio do “imaginário”, do que pode mover os grupos sociais, a abordagem dos fatos sociais pela “atitude do espírito”, a “mentalidade contemporânea”, como prefere Bloch.
A tradição oral, como os registros escritos, os arquivos documentais ou a narrativa dos cronistas e historiadores não constituem repertórios estáticos, reveladores de verdades definitivas. O passado é continuamente “redescoberto”, novos e distintos aspectos de épocas vividas são descobertos pela óptica do analista. O passado é, assim, reconstruído e refeito à luz de uma interpretação racional dos fatos que se superpõe à análise descritiva tradicional, de inspiração acontecimental. O passado é interpretado, na análise histórica, com as luzes do presente, com seus valores, segundo uma visão do mundo que não é contemporâneo dos fatos, mas de quem os analisa e interpreta.
Indagaram, certa vez, a Jorge Luis Borges, sobre o que pensava o grande escritor e poeta dos poetas contemporâneos. “Sim” – respondeu – “há um poeta jovem, Virgílio, que promete muito”.
Nada mais atual do que o passado, quando reconstruído na perspectiva da contemporaneidade.
Diz-se que Petrarca foi o primeiro homem moderno. Para tanto, buscou o grande humanista do Renascimento conhecer a Antiguidade e construir uma nova e mais profunda concepção desse largo horizonte temporal. A Antiguidade de Erasmo não é, com certeza, a mesma de Petrarca, a de Rabelais não é a de Montaigne, como a de Goethe não é a de Guilherme Humboldt.
As certezas inabaláveis de uma certa visão do passado e da História, por Injunção da Fé ou imposição das ideologias, correspondem a uma etapa da civilização que os humanos estimariam ter por vencida. A precedência dos dogmas; a ortodoxia que frustra e inibe as ideias; o silêncio impositivo da autoridade que busca sobrepor-se, autoridade da razão, têm seus domínios confinados nos derradeiros redutos da intolerância. As verdades com fundamento, com as quais se condenou o Justo, fazendo-o expiar pecados que não cometeu, segundo uma concepção imprecisa e, por vezes, hipócrita da falta de fé concedem o passo ao exercício da controvérsia, à margem das construções herméticas que aprisionam e domesticam as ideias.
Conta Claude Lèvi-Strauss, o festejado antropólogo de “Tristes trópicos”, que, pouco antes de iniciar seus cursos magistrais no Collège de France, um velho funcionário, envelhecido nos corredores do venerável cenáculo, levara-o a visitar as dependências do prédio centenário para que escolhesse o anfiteatro onde ministraria suas conferências. À porta de uma das salas, ponderou prudentemente: “Esta não. Alguém poderia falar com o senhor, ao atravessar o auditório. Não há outro caminho para chegar à Mesa”. Segundo a tradição Collège de France, o “professor deveria proferir palavras, não acolhê-las, nem mesmo trocá-las”.
(1) – Jorge Luis Borges – Entrevista concedida ao jornal “La Razo”’, Madrid, 9/6/1985.
(2) – Marc Bloch – “Apologie pour l’Historia”, Armand Collin, Paris, 1974, p. 22.
(3) – Albert Camus – “O Mito de Sísifo”, Livros do Brasil, Lisboa, [s/d.], p. 114.
(4) – Marc Bloch – ob. ell, p. 19.
(5) – Marc Bloch – ob. ell, p. 8.
(6) – Norbert Elias – “O Processo Civilizacional”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1989, p. 35.
(7) – Jorge Luis Borges – Entrevista ao jornal “El Día”, La Plata, 22/6/1988.
(8) – Claude Lévi-Strauss – “Minhas Palavras”, Brasilense, Silo Paulo, 1988, p. 9.
(9) – Manuel Lima Soares – “A Vida Maçônica do Duque de Caxias”, In “Revista da Sociedade Ceará Geografia e História”, v. IX, Fortaleza, 1982, p. 103.