“Antes de virar pó”, Naiana Íris declama as veredas de uma memória viva que se revisita à medida que se reconstrói. A menina que cresce deixa para trás a visão egocentrada de que o mundo para quando não está a seu serviço. Os versos que compõe acolhem o grito – que nunca foi só seu. Munida da desfaçatez e do charme da linguagem poética, a autora nos ensina a renascer ao passo que confronta seus próprios cadáveres.
A primeira morte deu-se ainda no jardim de infância, foi quando perdeu o Papai Noel para a ficção do real. Voltar a ser menina tem seu quê de magnífico, mas a memória não escolhe roteiro pré-estabelecido, se reedifica sob afetos acumulados. A casa de avó que abrigava os sabores mais doces foi também o covil do lobo disfarçado de familiar
A segunda morte que experimentou foi mais letárgica, perdeu-se a si-mesma emudecendo seu martírio no mais profundo silêncio. Somos alvejados pela dor compartilhada com a criança ferida na alma. É de repente: aconteceu a ela como acontece a nós. Já não podemos largar sua mão. O fingidor de mãos grandes intercepta a menina que segue para o seu universo encantado nas brincadeiras de quintal. Nem sempre ela conseguia fugir ao chamado. No corredor, tornou-se corredora.
A terceira morte foi a da sua querida avó, que rompeu o silêncio quando em fim descansou em paz. O peso das palavras não ditas é o fardo que resiliente aceitou de herança, enquanto o barulho se adensava entre as vozes dos familiares. Onde a Dor se faz em arroubos e prantos, é justo que o sigilo percorra outros lugares. Melhor seria se fosse invisível, e foi. Virou seu hábito não existir para o mundo.
O tom do relato se adensa à medida que a fantasia da menina é dissipada pela implacável realidade de se perceber mulher. Naiana Íris caminha ao lado do eu-lírico, meio mulher e meio deusa, sustentando a majestade profanada por homens nefastos e suas promessas vagas. Defendeu, pelo tempo que pode, a sacra imagem do amor das inconsequentes violências de seu protetor. Teste de coragem. Confiança abalada, repetição de padrões. Língua afiada:
– Facas não ferem deusas!
O amor turbulento, que perverteu o acalanto da partilha em vulnerabilidade e mágoa, parte sem reparar o estrago. Outras tantas mortes ela deixa ir. Aprende a dançar no vazio, enquanto a solidão das horas resgata saudades. Entre respiros e afagos que vêm e vão, o eu-lírico confronta a morte e sucumbe novamente.
O golpe certeiro dessa vez roubou-lhe a esperança que crescia no ventre: o coração que batia no ritmo do seu deixa de soar no exame. Entre o delírio e o real, o chão firme cede ao precipício que suga as almas angélicas para o Paraíso ou para o Nada. Enquanto sobre a vida pós-terrena a ciência não anuncia o veredicto, Naiana não firma sua crença, nem encontra a paz. No hospital, o choro dos recém-nascidos se confunde com o seu.
Quantas mortes ainda virão antes de virar pó?
O eu refletido no espelho já não se reconhece mais. É outro, Naiana e Íris. A divindade terrena leva dentro de si os pedaços de quem deixou de Ser. As partes amputadas, putrefatas, são importantes demais para serem deixadas para trás. Com “lágrimas na boca e alegria falsa nos olhos”, a alma peregrina segue sem rumo, o descanso derradeiro não tarda, é “menos um dia que nasce”.
O tempo que devora o corpo, também cura as dores da alma. Naiana Íris escreve para viver e para morrer. A escritora fecha seus ciclos, a ação que se encerra no “Particípio” inaugura o recomeço: “para renascer em outro tempo é preciso ter morrido por completo”. A passageira agora é motorista. A memória em retalhos torna-se versos livres de sangue, assume novas cores e finca seus pés na areia, bem longe da ressaca do mar.
“Ossos resistem
Versos também”