“… as instituições tradicionais estão perdendo todo o seu poder de controle e de doutrina. A escola não ensina, a igreja não catequiza, os partidos não politizam. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa, impondo padrões de consumo inatingíveis e desejos inalcançáveis, aprofundando mais a marginalidade dessas populações”,
Darcy Ribeiro, “Nossa escola é uma calamidade”
Quais são os limites da ação política de um conglomerado midiático?
Quais os padrões éticos que o poder público, a sociedade, deveria impor a grupos privados que têm o monopólio da informação? Não é ao Estado que incumbiria o controle da informação, pois esse poder concentrado na expressão mais poderosa do poder político estatal configuraria o domínio irrecorrível sobre a opinião. A informação, assim como a opinião, devem submeter-se a controles sociais e legais, fora do território do Estado e da fazenda privada de interesses cativos, contingentes.
A mídia não exerce uma forma de representação política, peculiar que seja, em razão do papel que lhe possa ser conferido, pois falta-lhe mandato popular. Constituída como hoje a vemos, pela sofisticação dos seus equipamentos materiais e intelectuais, caracteriza-se como um empreendimento nitidamente privado, ao qual se misturam investimentos públicos, associados pela íntima aliança entre o capital privado e os recursos públicos. O móvel há de ser outro, econômico, que, afinal, esta é a busca que prevalece entre os feitos humanos. Políticos, quase sempre, caminhos pelos quais transitam todos os cometimentos, circunstância que eleva consideravelmente os seus custos operacionais.
A mídia não se organiza estruturalmente como uma sociedade de capital aberto, fórmula própria às economias capitalistas. São, em geral, empresas familiares ou o conglomerado de grandes empreendimentos de feição público/privado. Não é comum ou notório que se estruturem como empresas de modelo cooperativo, que aos seus funcionários, redatores e técnicos, esteja aberta a subscrição de capital da empresa. Do capitalismo, serve-se de uma composição híbrida, anacrônica, entre a velha matriz mercantil e a sofisticação de uma economia de mercado.
As empresas midiáticas alinham-se com o perfil comum dos negócios comerciais, gozam das garantias de liberdades e direitos específicos (de algumas vantagens e privilégios) e protegem-se à sombra do resguardo constitucional reservado às instituições democráticas em um Estado de direito. Amparam-se mutuamente em associações que as defendem e constroem e reparam coletivamente a realidade, produto de um hábil processo de redução dos fatos e das suas circunstâncias contingentes. Mais recentemente, assumiram certas afinidades a que chamaram dissimuladamente “consórcios”, construção de inspiração monopolista que assegura o compartilhamento “inter pares” da notícia e da captação e habilidosa modelagem dos fatos. Assemelham-se a relações convenientes, próprias a uma confraria na qual fatos e eventos ganham uniformidade e coerência em uma narrativa convergente.
A alimentação econômica e financeira desse “sistema” múltiplo de poderes políticos dá-se pela receita publicitária e da propaganda governamental, dissimuladas em variantes plurais de informações de “interesse público” ou de alcance coletivo. O viés partidário e eleitoral está camuflado no conteúdo da notícia e da opinião editorial, dificilmente perceptível pelos incautos destinatários da “mensagem” servida.
Outras receitas demandam o caixa dessa milionária caixa de ressonância de interesses: atividades assessórias derivadas, investimentos diversificados em outros setores da economia ou, o grande veio de bons negócios, o da diversificação ilimitada de serviços ligados à internet, a redes sociais e ao entretenimento, jogos, etc.
A mídia é a representação mais completa do aparato econômico privado na política.
É preciso reagir ao lugar comum, tantas vezes repetido, que aponta qualquer restrição ou crítica à mídia como atentado ao princípio constitucional da “liberdade de imprensa”, para empregar essa surrada imagem que lhe serve de resguardo e defesa prévia. Na liberdade de criticar a mídia e dela divergir, licença concedida aos cidadãos em uma democracia, pretendem os mais radicais enxergar desrespeito ao seu papel democrático e, por consequência ao “Estado democrático de direito”. Por essa via estreita de julgamento sequer as instituições, os poderes constituídos, escapariam ao olhar critico e combativo dos que neles encontram a razão de tantos desvios éticos. Menos, naturalmente, na mídia.
Como associar a mídia, tal como se realiza a sua transfiguração, o seu avatar de metamorfose, a uma questão essencial — a liberdade de expressão — , se lhe faltam legitimidade e expressão popular ou um mandato para o exercício de uma representação legal e legítima?
Não se pretenda associar esses comentários, pouco usuais, admitamos, ao maniqueísmo que está por destruir o que restou de equilíbrio, bom senso e racionalidade neste confuso país de opiniões encomendadas. Bolsonaro, Lula, governo e oposição, esquerda ou direita, a CPI do COVID, senadores em transe patriótico, comentaristas a reconstruírem a realidade segundo a pauta editorial habitual da empresa, não podem ser a medida única da nossa desgraça e do infortúnio político da nossa miséria.
A inépcia do governo, cujo ciclo de destemperos ainda não se completou, não autoriza o cerco “democrático”, desfechado contra as instituições republicanas. O país conheceu desafios mais graves e desagregadores no passado, porém encontrou forças para contornar as suas inevitáveis consequências. Duas revoluções, desfechadas por ímpetos patrióticos sem tradução política compreensível, controlaram por cerca de 40 anos os destinos de um país pletórico de fantasias e ingênuas esperanças. Governos populares (populistas, na essência) empenharam-se, no espaço de 14 anos, em favor da redução estratégica da dogmática bolchevista a uma explicação “realidade brasileira”. Com a incompetência habitual, produziram coletivos à moda “petersburguiana”, criaram fontes de poder concorrentes e alternativas, e desmoralizaram o princípio da representação e do mandato. Tudo com o silêncio tolerante da mídia ou, em alguns casos extremos, com a sua colaboração.
Abrir as ilhargas da mídia e mostrar o que ela traz nos seus vazios não significa defender este governo pífio que instalamos democraticamente no poder e que dele pretendem os mais afoitos arrancar, agora, em defesa da democracia, num gesto de “graça” republicana.
De uma trágica questão de saúde coletiva, de vida ou morte, velhos oportunistas a serviço de intenções suspeitas voltam ao picadeiro para um ajuste de contas eleitoral. Velhas figuras paridas pelas oligarquias retomaram o seu lugar nos desvãos da política, apropriaram-se das sobras do poder em dissipação solerte — e pretendem apresentar-se como lídimos cruzados da democracia.
Povo, temos, mas está em falta, no momento.
Cada consórcio político-partidário pretende modelar o povo de que precisa. 33 siglas reclamam a sua vez para salvar o Brasil. Do que pretendem salvar-nos não fica claro nas suas atropeladas intenções. Muito menos o que prometem fazer. O resto fica por conta do Fundo Partidário e das Emendas parlamentares.
A mídia, com a mesma facilidade com que constrói mitos, heróis de novela e duplas sertanejas, faz políticos e os destrói, cria lideranças e as desmoraliza. Cria verdades novas ou refaz as antigas e dá-lhes a feição heroica das grandes revelações.
Não carecemos de “political influencers”, de “formadores de opinião”. Precisamos de povo, dotado de consciência política, com lideranças fortes, capazes de vislumbrar os seus inimigos e os aliciadores opiniáticos que comprometem o futuro distante pelo qual temos tanto esperado.
Difícil tornou-se, verdadeiramente, encontrar quem pretenda ser “povo”, afinal este é o pressuposto de uma democracia. Temos consumidores, funcionários do Estado, a magistratura, professores, os militares, os homens de negócios, os arautos da fé – e a mídia. E o povo de onde virá?