A manipulação social dos conceitos – Parte 3

 

 

“A ignorância gera mais confiança do que o conhecimento: são os que sabem pouco, e não aqueles que sabem muito, que afirmam de uma forma tão categórica que este ou aquele problema nunca será resolvido pela ciência.”

Charles Darwin

Há uma intencional positivação maldosa de conceitos que são intrinsicamente negativos quando vinculados a um modo de relação social consentâneo com a negatividade escravista sob a qual vivemos.

Diz-se, comumente, que no capitalismo temos a liberdade de escolha; incute-se nas mentes dos indivíduos sociais transformados em cidadãos a ideia de que todos podem ficar ricos. Trata-se da síndrome do cassino, na qual todos jogam, a maioria perde, alguns sortudos momentâneos ganham uma parte do butim que é sempre carreado para o dono do cassino, o banqueiro do jogo.

Síndrome do cassino – denomino como síndrome do cassino o fetiche personalíssimo segundo o qual o anseio de ficar rico obnubila a consciência da exploração da qual o jogador é vítima.

Outro dia, num trajeto longo a bordo de um veículo de aplicativo que me conduzia, estabeleceu-se um diálogo com o motorista, no qual tudo começou nos seguintes termos:

motorista: o que o senhor acha desse transporte por aplicativos?

Respondi: acho bem mais barato e cômodo do que ter um veículo próprio;

Motorista: é graças a ele que eu estou me virando. Fui demitido do meu emprego e comprei este meu veículo financiado de onde tiro o meu sustento e pago a prestação do financiamento;

Perguntei: em que ramo de atividade você trabalhava?

Motorista: eu fazia o controle de qualidade dos produtos numa fábrica e ganhava cerca de R$ 2.500,00 por mês com carteira assinada, e agora eu consigo tirar cerca de R$ 3.000,00 e pagar a prestação do financiamento. Quando terminar o financiamento, daqui a 60 meses, eu pretendo comprar mais dois veículos: um eu dirijo, e o outro eu vou alugar para um colega para melhorar a minha renda mensal. Para isso eu trabalho de 11 a doze horas por dia, e rodo cerca de 230 km diariamente.

Perguntei: qual a sua idade?

Motorista: 35 anos.

A breve história ora contada representa, hoje, na crise do desemprego estrutural, o retrato de como a sociedade do capital está buscando alternativas de sobrevivência e continuidade dos seus postulados na informalidade, estimulando o sonho de riqueza e prosperidade dos seus cidadãos escravizados.

No Brasil, a atividade industrial decresceu nos últimos anos, tanto com Dilma, como com Temer, o Presidente temerário e Boçalnaro, o ignaro, de forma acentuada.

O PIB do Brasil caiu em 22,5% de 2013 para cá. Devemos considerar que a atividade industrial (setor secundário da economia), juntamente com o agronegócio (setor primário), são as únicas atividades que produzem valor novo, aquele que sinaliza para a emissão de moeda com lastro, e estão em queda, o que diz muito sobre a volta da inflação e o colapso capitalista mundial e local.

O segmento de serviços (maior fatia do PIB em qualquer país economicamente mais desenvolvido) apenas transfere valor já existente, e como o Estado é forçado a emitir moeda sem valor, a inflação mundial (e local, principalmente) está em alta.

Na crise terminal do capitalismo, a breve história que ora contamos serve de análise para a negatividade daquilo que chamamos de síndrome do cassino, ou seja, o desejo (irrealizável, na grande maioria) do oprimido de se tornar capitalista e com o capital se tornar explorador de alguém que não detém o dito cujo.

Vejamos o caso citado: o banco que financiou o veículo cobra juros do financiamento;

– a indústria que vendeu o veículo obtém lucro na venda do mesmo;

– o comerciante que intermediou a venda do veículo, idem na comercialização;

– o circuito de produção e comercialização do combustível fóssil (poluente) consumido nos 230 km percorridos diariamente, idem;

]- a indústria e o comércio de peças, idem;

– O estado cobra impostos de toda a comercialização.

O ex-industriário, agora transformado em motorista de aplicativo com pretensões de se tornar capitalista, trabalha como um escravo, pensando ser patrão de si mesmo como autônomo, sem qualquer garantia trabalhista, e correndo risco de se acidentar no veículo; não poder pagar as prestações e perder tudo que havia pago ao banco em razão da draconiana lei da alienação fiduciária; e isto sem falar no alto risco de assalto, que tanto tem atormentado estes profissionais.

São poucos os que conseguem chegar ao fim da linha, após anos de trabalho exaustivo, e se tornarem donos de uma frota de veículos. Mas é esta a motivação de um cidadão que almeja se tornar rico capitalista: é o que considero como síndrome do cassino, um fetiche escravizador, que oportuniza que um em cada mil consiga furar o bloqueio das classes sociais que a mercantilização da vida se lhe impõe e se transformar de oprimido em opressor.

Afirma-se, ao invés de se perguntar: este critério de sociabilidade é indutor de desvirtuamentos das virtudes humanas, posto que é escravizador, ganancioso, individualista, ilusório, arriscado, egoísta, vicioso, impotente, contraditório, defeituoso, neurotizante, etc., adjetivos que se podem traduzir como fetiches negativos sob o manto da falsa liberdade de escolha de um modo de sociabilidade destrutivo e autodestrutivo de sua própria forma.

Meritocracia e competitividade – sob o capital todos são adversários de todos, e isto conspira contra a característica original dos seres humanos que, graças à solidariedade de grupos gregários conseguiu se sobressair dentre os animais que com eles competiam na seleção das espécies, conforme nos ensinou Charles Darwin.

O empresário, mesmo quando organizado em corporações capitalistas, é adversário do seu concorrente. As corporações capitalistas visam apenas defender os interesses básicos do capital, pactuando-se, tacitamente ou de modo explícito que na guerra concorrencial de mercado vence o mais predador (as agressões ecológicas que o digam).

O trabalhador almeja subir de posto para ganhar mais dinheiro e poder de mando no circuito no qual trabalha, tornando-se adversário do seu colega na competitividade fratricida da meritocracia, critério sob o qual pretende ser distinguido pelo seu patrão explorador e ganhar mais.

O político, que sob o capital apenas e sempre representa interesses corporativos, quando representante do capital (a grande maioria deles, sempre) age sempre em benefício deste, ainda que diga hipocritamente que defende os interesses populares.

Quando inseridos na institucionalidade capitalista representando os interesses dos trabalhadores (mesmo que sejam honestos defensores do sindicalismo de resultados), nada mais são do que fariseus trabalhistas que dependem da defesa institucional que defendem para si mesmos, mesmo quando defendem a melhoria das condições de trabalho e renda, que é o que lhes garante a sobrevivência política dentro do sistema que não pretendem superar.

Os políticos trabalhistas jamais almejam a superação da condição dos trabalhadores produtores de valor e propiciadores da alimentação do capital pelo trabalho abstrato como tais, porque isto representaria o desmoronamento da estrutura social sob a qual mantêm seus míseros nichos de poder institucional (sindical e político).

Um partido de trabalhadores é essencialmente capitalista, ainda que defensor do socialismo capitalista (ou ainda social-democrata), e esta é a razão pela qual eles fogem da doutrina marxiana da crítica do valor (Marx wertkritik) tal como o drácula foge da cruz.

O critério da meritocracia capitalista consiste no pressuposto segundo o qual quem produz mais e melhor num determinado espaço de tempo é merecedor de elogios e melhorias salariais. É que quanto mais ele ganha e reduz custos de produção de valor, mas ele oportuniza ganho aos seu empregador, e desemprego global.

Nas se trata de um reconhecimento social de mérito, mas um reconhecimento individualista que tem como base de raciocínio da realização do lucro. É por isto que o meritório trabalhador é promovido e elogiado como alguém que opera com destreza uma máquina que suprime empregos; que reduz os custos de produção que promovem a vitória na guerra concorrencial de mercado e aumenta o lucro patronal, ainda que isto reduza a produção global de valor de modo autodestrutivo de própria forma capitalista.

Numa sociedade na qual o mérito de cada indivíduo esteja diretamente relacionado ao benefício social coletivo, o critério de meritocracia será outro, ou seja, passaremos a admiram e considerar quem contribui para o crescimento social como um todo, e não para o enriquecimento individual de alguém.

Na sociedade do capital quem não produz não come, ou deve ser descartado como um peso social não contributivo. A ideia de genocídio dos considerados trabalhadores supérfluos pelas guerras capitalistas e crises epidêmicas está inserida sub-repticiamente na lógica capitalista.

Sob o capital o mérito está diretamente relacionado com a negativa ideia do lucro.

Um grande jogador de futebol, inserido no contexto do esporte transformado em mercadoria importante para o merchandising comercial, pode ganhar milhões de US$ em razão do que é capaz de fazer num campo de futebol nos 90 minutos de uma partida televisionada para o mundo. A grande maioria dos jogadores se frustra na busca do ouro no fim do arco-íris.

O mais grave disso tudo é que nos acostumamos a considerar o critério de meritocracia mensurado pelo valor que possa produzir como critério correto de sociabilidade.

De nada adianta a poesia de um literato, por mais belas e inspiradoras que passam ser se suas poesias não são vendidas;

– de nada adianta a música de qualidade se o público foi induzido (por ação ou omissão educacional) a gostar da música sem qualidade;

– para um laboratório de pesquisa de vacina, mais vale o lucro que advirá da venda patenteada da vacina do que o mérito daquele pesquisador anônimo que a descobriu;

– mais vale o inventor de uma arma altamente letal e sofisticada que mata milhões de uma só vez, do que o discurso pacifista do Mahatma Gandhi;

– um excelente professor ganha mal, mas um bicheiro mafioso que distribui migalhas a uma comunidade carente elege seu representante e é considerado benfeitor digno de respeitabilidade.

Como dissemos, os conceitos terminam por se consolidar nas mentes aculturadas educacionalmente de modo invertido em relação às verdadeiras virtudes. Ser honesto ou solidário com o nosso semelhante é quase como tirar uma certidão de “otário”. É por isto que se diz, equivocadamente, que “quem tem pena do coitadinho, fica no lugar dele”.

Mas podemos mudar estruturalmente tais conceitos!!!

Dalton Rosado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;