A INVENÇÃO DE MARTIN SCORSESE 

O historiador Ernst Gombrich, em seu monumental livro “A História da Arte”, afirma, no texto introdutório, que “Nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas.”. 

Martin Scorsese é, com certeza, um dos maiores artistas da história do cinema.

Como curador do Cineteatro São Luiz, tive a oportunidade de promover a exibição de alguns dos seus mais significativos filmes em uma das faixas de programação do equipamento, a “Perfil de Cinema”.

Títulos como “Touro Indomável”, “Táxi Driver”, “Gangues de Nova Iork”, “Cabo do Medo”, “Os Infiltrados” e “A Última Tentação de Cristo”, entre outros, compunham a mostra, numa inequívoca comprovação da ampla capacidade narrativa e estética do cineasta norte-americano, cuja ascendência familiar foi fundamental para sua trajetória artística – seu pai, Charles Scorsese, e sua mãe, Catherine Scorsese, ambos ítalo-americanos, eram atores de cinema.

Outro filme de Scorsese presente na mostra do São Luiz foi “A Invenção de Hugo Cabret”, produção de 2012 que teve 11 indicações ao Oscar – o filme acabou conquistando 5 estatuetas naquela ocasião, incluindo a de melhor fotografia, direção de arte e a de efeitos visuais/efeitos especiais.

“A Invenção de Hugo Cabret”, cujo roteiro, de John Logan, se baseia no livro homônimo do escritor Brian Selznick, conta a história do jovem Hugo Cabret, um garoto de 12 anos que vive em Gare Montparnasse, uma célebre estação ferroviária de Paris. 

Personagem fictício que vivencia tramas igualmente fictícias associadas a fatos reais – o que assegura certa verossimilhança à trama -, o jovem Hugo Cabret é, na verdade, um instrumento para que Scorsese teça uma justa e belíssima homenagem a um dos seus grandes ídolos, o francês Georges Méliès.

Pioneiro da sétima arte, o mágico e posteriormente cineasta Georges Méliès (1861 – 1938) foi responsável não só por grandes avanços narrativos e estéticos nos primórdios do cinema, mas também pela criação de efeitos especiais extraordinários para a época, o que muito contribuiu para que seus filmes se tornassem populares.

Tal prestígio junto ao público, contudo, trouxe para Georges Méliès o estigma – dado pela incipiente crítica especializada do período – de ser um autor menor, superficial, cujos filmes nada mais eram do que puro entretenimento, algo descartável e sem estofo intelectual ou cultural; em suma, uma mera e curiosa atração no contexto das exposições universais ou feiras mundiais tão em voga na época.

A tese depreciativa da crítica em torno da profundidade artística dos trabalhos de Méliès ganhou ainda mais corpo quando do lançamento, em 1902, daquela que viria a ser sua obra máxima, “Le voyage dans la Lune” (Viagem à Lua), cujo roteiro era baseado em dois romances extremamente populares: “Da Terra à Lua”, do francês Júlio Verne, e “Os primeiros homens na Lua”, do inglês H.G. Wells.

Considerado o primeiro filme de ficção científica da história, a obra foi consagrada pelo público na mesma medida em que foi espezinhada pelos críticos de então, que sequer consideravam literatura a matriz que originara o enredo do filme, no caso, os imaginativos livros de Júlio Verne e H.G. Wells.

Apesar do sucesso popular de seus filmes, Méliès amealhou, no decorrer dos anos, uma série de infortúnios comerciais, alguns deles devido as trapaças feitas pelo inventor e empresário Thomas Edson que, entre outras coisas, usurpou a distribuição e os dividendos dos filmes do francês em território norte-americano, então – como até hoje – um dos mais lucrativos mercados consumidores de cinema. 

Desgastado e desiludido com os mecanismos empresariais da atividade nascente, Georges Méliès acabou por se afastar do universo cinematográfico, vindo a ser “resgatado” pela indústria décadas depois, fato que o sensível filme de Scorsese retrata de maneira lúdica e poética.

Daí o espanto de muitos quando, durante uma entrevista para divulgar seu próximo e aguardado filme, “O Irlandês”, Martin Scorsese direcionou sua crítica para os filmes de super-heróis da Marvel  ao dizer que, mesmo sem ter visto as obras, as mesmas não eram cinema, posto que, para ele, cinema se configuraria numa atividade “…de seres humanos tentando transmitir experiências emocionais e psicológicas a outro ser humano.”

O espanto se deu porque, além da crítica do grande mestre guardar profundas semelhanças com as que os críticos de arte do final do Século XIX e início do Século XX fizeram em relação as obras de Georges Méliès, Scorsese assumiu tê-las feito sem sequer ter se dado ao trabalho de assistir as obras citadas.

Tal atitude, por óbvio, gerou uma série de reações não só entre o público afeito a esse tipo de produção, mas também entre vários profissionais da imprensa e do cinema, entre eles o cineasta James Gunn, um dos diretores das franquias da Marvel, que foi ao Twitter dizer ter ficado “…indignado quando as pessoas criticaram ‘A Última Tentação de Cristo’ sem ter assistido ao filme.”, pelo que ele estava muito triste por Scorsese “…estar julgando os meus filmes dessa maneira.”.

Ainda mais contundente foi a reação da jornalista Hemal Jhaveri, do USA Today, ao detectar, segundo ela, “… uma falha séria na declaração de Scorsese.”, qual seja, a de não “…perceber que toda a razão pela qual a franquia da Marvel é uma imensidão imbatível de sucesso é porque, em sua essência, os filmes tratam absolutamente de ‘Seres humanos tentando transmitir experiências emocionais e psicológicas a outro ser humano’.”.

Hemal Jhaveri justificou: “’O Homem de Ferro’ se conecta com o público, não apenas porque se trata de um cara rico que escapa de uma caverna escura, mas porque se trata de um homem que tenta (e constantemente falha) expiar uma vida de guerra. ‘Capitão América: O Primeiro Vingador’ ressoa não porque nos importamos com o mundo ser explodido pela Hydra, mas porque podemos nos relacionar com o azarão que está apenas tentando fazer a coisa certa. (…) ‘Pantera Negra’, quando vista do ponto de vista de Killmonger, trata-se de desigualdade e injustiça raciais. ‘Thor’ é praticamente shakespeariano, pois o conflito central é entre um rei idoso e seu herdeiro indigno.”

Membro da “Nova Hollywood”, movimento que revelou nomes como Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Paul Schrader, Steven Spielberg e George Lucas – esse último criador da franquia “Star Wars”, que coabita o mesmo universo fantástico dos filmes da Marvel e dos livros de Júlio Verne e H.G. Wells -, Scorsese parece acrescentar, com seu comentário, mais um capítulo em um belicoso enredo iniciado em 2018, quando o Festival de Cannes, num arroubo conservador e discricionário, não aceitou a inscrição de “Roma”, filme do cineasta mexicano Alfonso Cuarón, por não considerar cinema o que não é visto numa sala escura – “Roma”, uma produção da Netflix, não havia entrado no circuito comercial de salas de cinema. 

Steven Spielberg, companheiro de geração e amigo íntimo de Scorsese, aproveitou aquela deixa do Festival de Cannes para dizer o que pensava sobre o assunto, que na verdade tem como pano de fundo as imensas transformações em curso no âmago da indústria audiovisual: “Espero que continuemos acreditando que a grande contribuição que nós, diretores, podemos proporcionar ao público é a experiência de um filme no cinema”, acrescentando, com uma pitada de viés corporativista, que filmes financiados e lançados por plataformas como a Netflix “…poderiam concorrer ao Emmy, mas não ao Oscar.”

A despeito da opinião de Spielberg, existe a expectativa de que “O Irlandês”, o novo filme de Martin Scorsese – uma produção da Netflix, ressalte-se – venha a repetir a mesma trajetória de “Roma”, que não só foi indicado para 10 categorias do Oscar, como foi o vencedor em três delas: melhor diretor, melhor filme estrangeiro e melhor fotografia.

Quanto à polêmica declaração de Martin Scorsese, coube ao ator Samuel L. Jackson, que interpreta o personagem Nick Fury em alguns dos filmes da Marvel, um dos comentários mais perspicazes. Disse Jackson: “Filmes são filmes. Você sabe, nem todo mundo gosta das coisas dele também. Eu digo, nós gostamos, mas nem todo mundo gosta. Há muitos ítalo-americanos que acham que ele não deveria fazer filmes sobre eles dessa forma. Todo mundo tem uma opinião, então tudo bem. Ninguém vai parar de fazer filmes por causa disso.” 

E talvez esse seja realmente o ponto a ser considerado: Ninguém vai parar de fazer filmes por conta dessa ou daquela opinião, por mais ou menos abalizada que seja. Porque cinema, como dizia Humberto Mauro, “…nada mais é do que cachoeira. Deve ter dinamismo, beleza e continuidade eterna.”, ao que acrescentaria: e público, que como tal deve ser respeitado, seja ele composto por dezenas ou milhares de pessoas.

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