A insensibilidade e alheamento do capital e seu Estado ao drama humano

“Por um voto em branco, você está dizendo que você tem uma consciência política, mas você não concorda com qualquer um dos partidos existentes.”

José Saramago

Não é incomum, no curso da história da humanidade, o distanciamento dos governantes e seus sistemas em relação às transformações sociais profundas que se operam nas sociedades em razão do processo dialético do movimento que tudo modifica, tal como uma pequena rachadura num dique que se transforma numa avalanche incontida.

Os imperadores romanos do final dos seus impérios já não se apercebiam da insatisfação popular e decomposição da organização político-militar e do perigo representado pelo surgimento dos hordas de bárbaros que ameaçavam o poderio militar romano e que terminaram por destrui-lo.

Nos estertores da segunda guerra mundial Adolf Hitler, ainda no início de abril de 1945, mês do seu suicídio num Bunker em Berlim, conclamava divisões militares inexistentes e o povo alemão (os berlinenses em particular), aí incluídos adolescentes ingênuos, à resistência diante do ataque russo e dos aliados que já haviam subjugado todas as forças armadas alemãs, a wehrmatch, composta do exército (heer), marinha (kriegsmarine) e força aérea (luftwaffe).

A dinastia dos Bourbons que então já durava 250 anos na França, cujo último monarca foi Luís XVI e sua esposa Maria Antonieta (que os franceses chamavam de “a austríaca”), ficaram completamente atônitos com a evolução da revolução republicana burguesa no final do século XVIII que os levou à guilhotina. É celebre a frase de Maria Antonieta quando indagada sobre o que fazer com a falta de pão para os pobres aconselhou com desdém que comessem brioches.

A dinastia dos Romanov na Rússia, com seu último Czar Nicolau II e sua Czarina, no início do século XX, envolveram-se com o conselheiro místico Rasputin, um charlatão de primeira, o que demonstra bem onde estavam as suas cabeças.

Também não compreenderam o processo revolucionário que se acirrava em razão das mutações sociais mercantis e da participação desastrosa nas guerras que antecederam a primeira guerra mundial e nela mesma. Terminaram metralhados pela revolução bolchevique.

No Brasil sob o governo pretensamente nacionalista de Boçalnaro, o ignaro, e de Paulo Guedes, o liberal ortodoxo, aliança que por si só já denota a contradição implícita de pensamentos doutrinários paradigmáticos, e os políticos em geral (aí incluída a esquerda dita anticapitalista), estão mais preocupados com 2022 e suas eleições do que com o mês de maio de 2021 e seu cada vez maior número de mortos por covid19, desempregados e de mendicância em suas ruas.

Vivemos um desses momentos históricos. O capitalismo vive um artificialismo de seus conceitos firmados sob suas categorias fundantes cujas características se encontram em fase de decomposição orgânica e que já não cumprem a contento as suas funções sociais.

Mas os capitalistas e seus representantes políticos (os segmentos conservadores, de centro e inclusive a oposição bem comportada, a esquerda institucional) parecem alheios ao que está subjacente aos seus comandos e que gera a insatisfação popular que aqui e ali explode em razão de pequenas reivindicações (como aumento de passagens em São Paulo, e tantas outras questões pontuais, como na França dos gilets jaunes– coletes amarelos – que antes de se preocuparem com os efeitos da emissão do CO², estavam preocupados com as contas do fim do mês) sem que aparentemente se tenha explicações para tantas explosões de descontentamentos populares.

As explicações sobre o levante popular de junho de 2013 não foram compreendidas pela outrora revolucionária Dilma Rousseff e seu partido, e ainda hoje há quem o explique como manifestação urdida pelo conservadorismo verde-amarelo (que apenas se aproveitou do vazio político criado). Há mais coisas no ar do que os tradicionais aviões de carreira (e que agora estão estacionados nos aeroportos por conta da pandemia).

Dissequemos as categorias capitalistas sucintamente (e a título de breve explicitação do que queremos concluir):

a) a forma-valor – quando os seres humanos passaram a usar os seus excedentes de produção comunitária ou individual em trocas por outros bens de que necessitavam, ao invés de partilhá-los como se fazia originalmente, estabeleceu-se naturalmente um critério de mensuração de quantidade e qualidade dos bens a serem trocados.

Tal critério era o tempo de esforço físico para a obtenção do resultado final de cada bem. Se uma determinada quantidade de cereal demandava menos tempo de esforço humano de produção que a produção de uma quantidade de tecido, tal tecido deveria valer uma determinada quantidade de cereal de acordo com o grau de tempo e esforço de produção utilizado para um bem e para o outro.

Foi assim que, rudimentarmente, passou-se a ter uma ideia de quantificação qualificada de cada produto destinado ao consumo. Estava introduzida socialmente a ideia de valor e das trocas de objetos que passaram à condição de mercadorias e toda as suas negatividades intrínsecas.  

Portanto, o valor passou existir como cálculo do tempo de esforço humano de produção, capaz de representar o seu próprio acúmulo enquanto riqueza individual, inicialmente sob a forma de objetos armazenados e destinados à troca, como forma de poder de uns sobre outros.

Parte da produção social passava a ter um valor de troca baseado no esforço humano e de sua carência e necessidade de consumo. Era o valor de uso (socialmente natural) subsumindo-se ao valor de troca (socialmente artificial). Estava decretado, num futuro próximo, o fim da produção social partilhada, e entronizada a produção social exclusivista.

b) o dinheiro e mercadorias – na partilha, os bens destinados ao consumo social comunitário não são mercadorias: são simplesmente objetos com valor de uso, sem qualquer quantificação numérica artificial. Ainda hoje, quando um agricultor produz uma quantidade de cereais destinados ao consumo familiar, sem levá-lo ao mercado, tais cereais têm um valor de uso natural, e nesta condição não são mercadorias; apenas objetos. Simples assim.

Com a evolução das trocas, tornou-se necessária uma representação do valor num determinado objeto eleito como especial e que serviria como intermediário das trocas numa relação de quantificação preestabelecida: dez quilogramas de sal valeria um de peixe; um saco de sal valeria uma sandália; e assim por diante.

Como aprendemos nos nossos estudos rudimentares, sem que fôssemos alertados para a negatividade aí implícita, aprendemos a positivar as trocas. Assim, numa determinada região o sal (como muitas outras mercadorias usadas) agora era o equivalente geral capaz de viabilizar todas as trocas de objetos, com uma nova e adicional característica: como mercadoria.

Tudo parecia um ganho civilizatório, sem que se se apercebesse o grau de negatividade social aí embutido graças à capacidade de subjugação e acumulação da riqueza de modo segregacionista implicitamente contido nas trocas de mercadorias.

Como sabemos, tudo terminou por desembocar em mecanismos sofisticados de viabilização de trocas a partir de uma convenção representativa de valor mais fácil de manuseio e numericamente contábil: o dinheiro, que inicialmente metálico, e depois em papel, hoje já é também eletronicamente usado sem qualquer representação física de manuseio.

Assim, o dinheiro, é a mercadoria das mercadorias, e a única sem valor de uso, mas capaz de comprar todas as outras. O dito cujo nada mais é (ou deveria ser, mas já não é, como veremos) do que a representação fidedigna do valor, capaz de ser acumulado abstratamente por representação numérica.

As mercadorias sensíveis ou as mercadorias serviços, são, todas, mensuradas pelo valor, e são (tecnicamente) o acúmulo de tempo de esforço humano a elas acoplado ou hipostasiado. Fora disso, é artificialismo inconsistente do ponto de vista da lógica do capital, como agora ocorre com o dinheiro tirado do colete dos Bancos Centrais sem qualquer conexão de valor.  

c) o trabalho escravo e abstrato –   Ora, se se tinha poder com o acúmulo de bens (aí incluída agora a própria terra), quanto mais se pudesse produzir, maior poder de barganha seria concentrado nas mãos de quem mais produzia. Como a capacidade de produção individual era reduzida (até porque tudo era basicamente produzido por esforço físico direto), quem subjugasse mais pessoas no sentido de obter maior produção para si seria mais poderoso.

O vírus da ganância de poder individual estava então inoculado nas consciências humanas tão destrutivamente como um microscópico e letal vírus que se instala sorrateiramente no organismo humano e o mata.

Mas estava instalado, principalmente, o sentido de escravidão humana, desconhecido por algumas sociedades humanas tidas como atrasadas e incultas, como as indígenas nas Américas, por exemplo. Os civilizados não eram tão civilizados assim.

Com o passar do tempo e o desenvolvimento das consciências humanas quanto ao absurdo de se ter alguém como propriedade legal e como escravo, e a própria dinâmica do capital em formação, exigiu-se um tipo de relação social na qual seriam os trabalhadores remunerados em valor a menor e produtores de valor a maior num determinado período diário (a mais valia dissecada por Marx) a nova e generalizada forma de mediação social.

Surgia a escravização indireta do trabalho abstrato assim considerado por produzir coisas concretas (o objeto servível ao consumo) e abstratas (o valor, mensuração meramente numérica do tempo de trabalho quantificado em valor).  (continua na segunda parte)

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;