A dor da gente não sai no jornal, nem na rádio, nem na televisão. Por CAPABLANCA

Dona Germana acordou sobressaltada de madrugada. O filho de nove anos estava gemendo e febril, reclamando de dor de cabeça. Ela pediu ao marido para acompanhá-la ao Posto de Saúde que fica a 1 quilômetro de sua casa. Deus sabe como, porque eles não têm carro, mas em meia hora estavam na recepção, pedindo socorro. Foi atendida quando o sol já clareava o céu, mais ou menos duas horas depois de chegar. O médico foi rápido e completamente vago: deve ser uma virose, coisa desse tempo de chuva, observe, dê banhos com toalhas mornas, se não melhorar volte aqui. E deu uma dose de antitérmico.

André Felipe foi para a primeira entrevista de emprego de sua vida e nesse dia descobriu que não sabia inglês, não tinha redação própria, não sabia interpretar texto e lia com dificuldade em voz alta. Ele já estava com 19 anos e não conseguiu perfil para entrar na universidade pública gratuita. Inscreveu-se nos dois programas de financiamento e de bolsas parciais, mas nada deu certo. Voltou pra casa sem entender bem o seu drama. Sua irmã mais velha não teve tais problemas e já estava perto de se formar Pedagoga e tem emprego.

Pedro Ferreira tinha que acordar antes das seis para poder chegar às oito da manhã no trabalho. Ele não mora tão perto do trabalho, mas o problema mesmo é dos ônibus, sempre atrasados, sempre cheios, sempre lentos e meio sujinhos. Na volta para casa o mesmo drama, duas horas para chegar, com exatamente os mesmos inconvenientes. Ah, o ônibus agora tem rádio e sinal de internet, duas coisas que ele trocaria por coisas mais simples e úteis para não sofrer tanto na ida, na vinda, pereira, na volta de segunda a sexta. Mas essas coisas nunca mudam para valer, dizem que vai ter metrô.

Albertina acaba de receber a conta de energia e ver que foi um pouquinho maior do que os dois meses anteriores. Dizem que uma bandeira que era verde, passou a amarela e depois a vermelha. E a conta subiu duas vezes seguidas, Deus sabe porque uma bandeira entra no seu bolso e lhe tira uns trocados a mais. Ele só ouviu o galo cantar: diz que a energia da termelétrica é muito cara, e não para de subir. Ele desconfia que alguém leva vantagem nisso, o pai dela disse a ela que no tempo dele não tinha essa história de bandeira colorida.

Juanita teve um problema com o celular. Desde que acordou está enfezada, diz que a vida dela sem o celular e sem a internet é impossível, ela mal consegue respirar direito. Já reclamou da operadora nova, e não conseguiu nada, só um número de protocolo. Já está na terceira operadora desde que ganhou o celular e o acesso à internet. Ela só queria mais atenção e respeito quando os problemas acontecessem. Afinal, o preço que ela paga não é assim baixo, pelo contrário. Na última reclamação ela recebeu até desaforo da telefonista, que não parava de interromper o atendimento e depois agradecer por não desistir. Parece um inferno, e repete, repete, repete…

Ana Maria tem rezado para todos os santos e não perde uma missa de domingo, confessa e comunga, um terço por dia, uma novena por semana. Já falou com deus e o mundo, mas o marido continua sem emprego. E já faz um ano redondo. Não fosse uns três bicos que ele fez e a ajuda de um irmão que trabalha, e ela e ele já estariam pasando necessidades. Será que alguém está cuidando de fazer as coisas melhorarem e os empregos voltarem. Houve um tempo que tudo parecia estar em ordem. Aí veio uma tal de crise. Imagina se ela tivesse filhos…

A dor dessa gente não sai no jornal, nem na rádio, nem na televisão. Por outro lado, são notícia dez vezes por dia a taxa do dólar, a oscilação da bolsa, a recuperação da economia, o défict público, a reforma previdenciária e dicas de onde e como investir dinheiro. Pouca gente entende porquê.

Capablanca

Ernesto Luís “Capablanca”, ou simplesmente “Capablanca” (homenagem ao jogador de xadrez) nascido em 1955, desde jovem dedica-se a trabalhar em ONGs com atuação em projetos sociais nas periferias de grandes cidades; não tem formação superior, diz que conhece metade do Brasil e o “que importa” na América do Sul, é colaborador regular de jornais comunitários. Declara-se um progressista,mas decepcionou-se com as experiências políticas e diz que atua na internet de várias formas.

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Ernesto Luís “Capablanca”, ou simplesmente “Capablanca” (homenagem ao jogador de xadrez) nascido em 1955, desde jovem dedica-se a trabalhar em ONGs com atuação em projetos sociais nas periferias de grandes cidades; não tem formação superior, diz que conhece metade do Brasil e o “que importa” na América do Sul, é colaborador regular de jornais comunitários. Declara-se um progressista,mas decepcionou-se com as experiências políticas e diz que atua na internet de várias formas.