A história de hoje, por tratar-se de assédio moral, de violência e de escravidão, embora remunerada, (como pontua o escritor Dalton Rosado), conto-a, com um quê de rubor, como se confessasse uma indecência, embora alheia.
A escravidão no Brasil afigura-se no imaginário popular como uma inocente fábula primitiva, daquelas contadas pelas nossas avós:
_”Era uma vez, quando os animais falavam…” _ (E a gente pegava no sono,
antes do fim) …
É como se a canetada da princesa Isabel tivesse a lonjura de um evento adâmico… Assim, o pós-abolição foi ganhando aquela “suavidade” de que falou Joaquim Nabuco: … “A escravidão espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade.”… Desse modo, sua torpeza foi-se esvanecendo na memória; viraram sombras diluídas no tempo.
Contudo, ostenta-se (no esconder) esta profecia do mesmo Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.”
Para situar o ponto de partida dessa narrativa, devo dizer que ninguém escolhe o lugar onde nascer. Minha mãe e uma parteira nasceram-me numa casa de remediados camponeses, ao pé de uma grande serra… O nome “Picos-PI” é sugestivo…, porém, se me fosse dado o arbítrio de renascer, renasceria do mesmo modo e no mesmo lugar.
Da porta da frente, ainda clareiam os montes a abraçarem o horizonte…. Na minha fabulação infantil, eles eram uma escada para o céu!… Naqueles espaços, lembrando Manuel Bandeira, formou-se a “minha mitologia” ou o meu “itinerário de Pasárgada”…
Quando quero revisitar o menino que reclama em mim, fecho os olhos e me reporto a um fevereiro ou março da minha infância… sento-me numa pedra e posso ver o filete d’água escorrer do penhasco e espraiar-se no lajedo… e sentir o frescor de um cheiro novo a recender num mundo velho!
Evoco cabritos a pular de penha em penha, numa precipitada ciranda de crianças arteiras… E as vacas de mugidos dolentes, ao encontro dos bezerros, no aconchego dos currais, convidadas pelo aboio negro do velho vaqueiro, numa cadência de baião e blues, como a brotar da própria ancestralidade.
Paremos, pois, com essa página de enlevo e nos fixemos em 1970, ano nada idílico. Tive então meu primeiro contato com uma grande seca. Ocorreu-me ali o meu batismo na realidade do sertão.
Quando mentem as pedras de sal; quando se baldam as preces ao glorioso São José; quando se “espera por barra e barra não vem”… E chuva não vem… Aí é um murchar completo de planta, de bicho e gente… E vem o resmungar sozinho, o riscar o chão, o olhar perdido… “As vidas secas”.
Aliás, o título “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, é um exemplo de coerência entre título, texto e mundo.
Foi então que, da calçada, vi homens engatinhar aquela mesma serra, em demanda da macambira de flecha, (uma espécie que brota nas fendas dos penhascos), para extrair uma espécie de farinha daquela planta rusticamentesilvestre.
Eis que, nesse transe, surge uma obra emergencial: abertura de uma estrada com o fito de ligar alguns municípios do semiárido à BR Transamazônica. (Mas,com efeito, era uma estrada que partia de lugar nenhum para lugar nenhum).
Algo, de sorte surreal, que faz lembrar “O Memorial do Convento” de José Saramago… Uma multidão de homens e mulheres afluíra para aquela compulsória aventura no meio da caatinga…
Chego mesmo a imaginar um mote para aquela extravagância:
“Se o penhor do teu pão for a tua dignidade, entrega-a e sobrevive.”
A obra era administrada pelo exército. E todo aquele povaréu submeteu-se a uma disciplina de caserna. O comandante dos feitores (ou instrutores) era um militar (ignoro a patente) …. Sei que Toscano era o seu nome… um homem colérico, neurastênico a correr, de um lado para outro, a esbravejar como um demônio fogoió, afogueado no sol da caatinga.
As filas eram sua mania. Relatos dão conta de que perfilavam mais do que trabalhavam… O indefectível cassetete funcionava como um varapau na mão de um vaqueiro para domar o gado. Ao menor desalinho, colhiam-se estocadas e pisadelas de coturno.
Veio 1971. Ah, 71!…. Muita chuva e safra farta!… (No sertão, os anos são como personagens de uma saga: há heróis e há vilões) … A estrada, com seus sortilégios, ficou para trás; o temível militar, também…. As feridas morais foram cicatrizadas com bom humor. Toscano tornou-se uma figura anedótica e ganhou uma profusão de xarás. Não havia boi indômito, burro xucro, jegue coiceiro, cãonervoso…que não recebessem por alcunha o seu nome.
Aqui fica uma reflexão de quem viu tudo de perto: o sistema de frentes de emergência, para mitigar os efeitos das secas, é uma página triste da história do semiárido, felizmente virada no início do século XXI. Lula decretou o seu fim, o presidente berrou aos quatro ventos que, para barragens e estradas, existem as máquinas; os homens vão cuidar dos seus roçados.
Já rapaz, em 83, prestando serviço para a SUDENE, fui designado a receber informações, via rádio, nas dependências do 3° BEC em Picos-PI. Ali eu fazia osrelatórios de uma imensidade de açudes, espalhados por municípios do Ceará e Piauí. Pude então constatar in loco a ineficácia do sistema.
Àquela época, eu já tinha a dimensão dos estragos ambientais e da energia humana desperdiçada naquela malfadada lida… O fim dos trabalhos coincidia, por assim dizer, com ciranda meteorológica dos meninos: El Niño(com a seca); La Niña (com a chuva) …. Quando sai aquele e entra esta, todas as aquelas obras, sem projeto e sem propósito, vão-se literalmente de água abaixo, nasenxurradas do verão seguinte.
Assim como da estrada de 70, dos açudes de 83 restam apenas cicatrizes, na caatinga, a testemunharem um tempo de ordem (ou desordem) sem progresso.
E a velha serra dos meus cismares continua a alternar o verde e o cinza, porém os homens já não engatinham em demanda de sua macambira. Os mais jovens nem sabem que, um dia, comeu-se aquela coisa de teor nutricional e toxidade ignorados.
Lamentavelmente, vez por outra, deparo-me com os nostálgicos do tempo, em que o flagelo era mitigado com flagelo. Essa galera me faz lembrar o protagonista de “O Ateneu” de Raul Pompeia, ao confessar sentir uma ponta de “saudade hipócrita” do seu tempo de assédio no internato.
Como matuto da caatinga, eu prefiro o SER e SER TÃO livre!… Afinal, “O sertão é dentro da gente”… Conservo essa sentença de Guimarães Rosa.
Essa, Camilo, é pra você!
Teresina, 06 de agosto de 2024.
Macedo