A CULTURA PRECISA DE EDUCAÇÃO À memória de Paulo Freire

Ainda vejo minha infância como um tempo de livros e sonhos. Nos livros, eu fabricava sonhos e, nos sonhos que eu não sabia ler, via as alegrias e as tristezas do coração. Eu sentenciava meus sonhos a correrem comigo no quintal de casa, iluminava-os no galho mais alto do cajueiro. E dali eu os alçava para o infinito.

O tempo ia passando e a escola ia substituindo sonhos por deveres, muitos dos quais enfadonhos, mas era preciso mostrar o boletim para meus pais. E, poucas vezes, eu tive oportunidade de aprender a arte de sonhar na escola. Gostava de desenhar, pintar, escrevinhar uns versinhos… e olhar os cabelos negros da morena que sentava à minha frente.

Hoje, a escola está repleta de teóricos e suas teorias mirabolantes. Escreve-se sobre a solução de tudo que é problema, menos do problema que é fruto da escória indigesta da política centenária que sufoca a escola e o seu agente principal, o professor. Quem, de sã consciência, diria a um filho seu que vá ser professor? E olha que eu dou aulas num Curso de licenciatura de uma Universidade Federal. Então, como pensar na escola sem professor, sem educação, sem cultura? E por que relacionar os três? É porque fica difícil conviver com a escola atual sem os ingredientes necessários para que os livros e os sonhos voltem a reinar no ambiente escolar. 

Há trinta anos, um professor do antigo primário me deu uma lição de como era antes. E olhe que foi apenas uma conversa amena, numa posse de diretoria de um clube de serviço. O mestre falava com segurança de autores que a maioria dos professores e estudantes nunca terão tempo de ler. E foi uma conversa embalada pela erudição do professor aposentado que vez por outra lamentava o “hoje” de trinta anos atrás. Posso, daí, fazer algumas perguntas que ficarão sem respostas. Qual o professor, independente da disciplina, está levando Shakespeare e José de Alencar para sala de aula; Salvador Dali e Di Cavalcanti; Tchaikowsky e Villa-Lobos; Michelângelo e Aleijadinho; Brecht e Qorpo Santo; Spielberg e Glauber Rocha; para citar apenas dois, um estrangeiro e um brasileiro que se destacaram em cada área artística. E não se pode pensar que isso é função de Educação Artística, por que até os professores desta disciplina estão precisando ser apresentados a muitos destes gênios da arte.

Para que cheguemos a sentir uma necessidade da arte, incorporá-la aos nossos hábitos diários, é fundamental que seja inserido na educação formal uma educação cultural que transforme o homem num profissional humanizado e num cidadão responsável.

A escola deve ter como princípio, além da transmissão, a criação e a difusão da cultura e do saber em função da liberdade do povo.

Cabe mostrar a noção de atividade cultural que teve o IV Plano de desenvolvimento Francês:

 

O desenvolvimento cultural de uma sociedade, em um dado momento de seu desenvolvimento econômico e social, deve expressar a qualidade das relações do homem com essa sociedade; isto é, o grau de autonomia do indivíduo, sua capacidade de situar-se no mundo, de comunicar-se com seus semelhantes e de participar melhor da sociedade, podendo, ao mesmo tempo, liberar-se. Nessa perspectiva se trata de optar por um certo número de valores individuais e coletivos que tornem o desenvolvimento cultural a finalidade das finalidades.

 

Esta noção de atividade cultural está diretamente ligada à qualidade de vida do homem. Entenda-se, por isto, qualquer atividade cultural capaz de “redimir o homem da alienação que lhe foi imposta por uma sociedade cada vez mais industrializada, tecnificada e urbanizada”.

Se na América Latina sofremos por falta de políticas culturais definidas, dentre a falta de outras políticas, no Brasil, particularmente, não há qualquer política séria e eficaz para a valorização da cultura. Com um enorme agravante de que os meios de comunicação de massa exercem uma influência devastadora sobre os meios tradicionais de cultura: o livro, o teatro, o museu, o cinema estão sendo superados pelos meios multimídias. Para que qualquer tipo de conhecimento seja transformado na/pela escola, gerando novos conhecimentos, é necessário fortalecer o elo principal deste processo: o educador. 

Neste contexto escolar, em que a educação que parte da escola poderá voltar a ela através da prática educacional de seus educadores, será preciso um permanente compromisso destes educadores com a sua formação crítico-humanística e com o contexto sociocultural em que estejam envolvidos.

Precisamos formar leitores, pesquisadores, cientistas, escritores, artistas, já desde o ensino fundamental, para não nos transformarmos num país de povo demente, como quer a maioria dos nossos governantes.

 Educar-(se), antes de tudo, é saber dividir a cultura com os que, de alguma forma, são impedidos de ter acesso a esse bem universal que é a educação.

O ponto de partida de uma grande tomada de consciência, dos que participam direta ou indiretamente do processo educacional, será através da participação do educador na problemática social com uma atitude política frente à realidade; a reestruturação dos currículos escolares, construídos pelos diversos segmentos educacionais interessados e a associação da cultura à educação. Sem isso, corremos o risco de uma acefalia generalizada. Mais sério ainda, contribuiremos para a formação de uma cidadania de papel.

 

Carlos Gildemar Pontes

Carlos Gildemar Pontes

CARLOS GILDEMAR PONTES - Fortaleza–CE. Escritor. Professor de Literatura da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Doutor e Mestre em Letras UERN. Graduado em Letras UFC. Membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL. Foi traduzido para o espanhol e publicado em Cuba nas Revistas Bohemia e Antenas. Tem 26 livros publicados, dentre os quais Metafísica das partes, 1991 – Poesia; O olhar de Narciso. (Prêmio Ceará de Literatura), 1995 – Poesia; O silêncio, 1996. (Infantil); A miragem do espelho, 1998. (Prêmio Novos Autores Paraibanos) – Conto; Super Dicionário de Cearensês, 2000; Os gestos do amor, 2004 – Poesia (Indicado para o Prêmio Portugal Telecom, 2005); Seres ordinários: o anão e outros pobres diabos na literatura, 2014; Poesia na bagagem, 2018; Crítica da razão mestiça, 2021, dentre outros. Editor da Revista de Estudos Decoloniais da UFCG/CNPQ. Vencedor de Prêmios Literários nacionais. Contato: [email protected]

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