A CULTURA DOS MANIFESTOS E REFERENDOS (PLEBISCITOS) E A REVITALIZAÇÃO DOS PODERES DO ESTADO

Pedem-nos para assinarmos manifestos em favor (ou defesa?) da democracia. No que pensam essas generosas criaturas?

Os bolcheviques chegaram ao poder convencidos de que traziam a missão para mudar o homem e trazer-lhe a felicidade que o socialismo lhes prometia.

Milhares foram os manifestos produzidos e fartamente distribuídos por essas criaturas iluminadas pela ideologia para que fossem assinados: entre intelectuais, estudantes, nos quartéis, nas fábricas, entre artistas.

Em favor da paz, do nacionalismo, da união dos povos.

O “Kominterm”, de Moscou, dirigia e patrocinava os congressos internacionais, públicava livros em todas as línguas vivas, recrutava adesões em favor da liberdade…

De qual liberdade falavam e a qual democracia referiam-se Lênin, Stálin, Gramsci, Mussolini, Fidel, Mao e os seus seguidores?

De qual democracia falam os manifestos que voltaram a circular pela Internet? Da Democracia americana? Da Democracia de Pútin? Da democracia católica pela voz dos antístites militantes? Ou dessa democraciazinha populista que prosperou na América Latina? Da direita peronista, das FARCS, da pedagogia da libertação, da esquerda dos movimentos sociais e sindicais mantidos com verbas públicas ?

De qual democracia falam Lula, Zé Dirceu e Bolsonaro? Qual é agora a democracia de Alkmin?

De qual Estado de direito deveremos falar? E que tipo de república elegemos como modelo e referência das liberdades pretendidas?

Desta guerra retórica orquestrada pela mídia, conforme regras e ordenamentos eleitorais, o que imaginamos poder colher?

O país marcha inexoravelmente para uma ruptura política sem precedentes. Nem mesmo nós, brasileiros, acostumados aos conluios de opinião e de interesses e às convergências oportunistas de partidos e de lideranças corrompidas, seremos capazes de encarar, como sempre o fizemos, acordos e entendimentos, em nome da “paz da família brasileira”, pela “família e a liberdade”, como fizemos muitas vezes no passado.

Os políticos e os novos “formadores de opinião”, com o compensador recurso à mídia e à mentira, levaram longe demais, com a criminosa indulgência e o ativismo de setores ideológicos encravados nos governos, a radicalização de propósitos.

Mente-se tanto nos tratos sobre votos, eleições e urnas, que já não distinguimos o fato do feito e a fita do fato.

A tecnologia tornou-se, como a ciência no caso das vacinas, medida, provisão e terapêutica para as discrepâncias em torno da materialidade e da ética da urna e da sua utilização cívica.

De tão complexo o processo eleitoral construído pelo que se chama, no Brasil, de “lei eleitoral”, as pessoas haveriam de preferir o artesanato eleitoral dos tempos dos “votos a bico-de-pena” e da cédulas impressas. Ademais, da sua eficiência e justeza na escolha dos eleitos…

Vamos combinar, das eleiçôes a “bico-de-pena” do passado, saíram governantes que, se melhores não foram do que generais e um ditadorzinho-bacharel dos Pampas, piores certamente não o foram…

A fragilização institucional a que assistimos não poderá ser corrigida, na situação a que vamos chegando, pelos acordos, convergências armadas pelo medo — ou por pura e pacífica conveniência, com a troca de favores e indulgências recíprocas.

Passou da hora. O “timing” esgotou-se. Como nos movimentos revolucionários de outrora, soou a hora da confrontação.

A diferença está em que a queda das oligarquias e a derrubada de governantes ocorrem — assim como a escolha de quem deverá ser posto em seu lugar —, nestes dias carregados de patrióticas intenções jurídicas, longe das ruas, ao largo dos quartéis, sob o peso da mídia, das redes sociais e das laboriosas exegeses constitucionais. Por essa razão estes expedientes não são tratados como se “golpes” fossem.

Recebem o rótulo de “intervenções”, incisões constitucionais pontuais, precisas, asseadas, ainda que recheadas de epítetos, tropos e citações latinas.

Corrigem-se, na nova modernidade jurídica dos nossos tempos, as anomalias do funcionamento do Estado, mas não se o faz mediante leis elaboradas pelos poderes legislativos, como de costume, desde que os gregos inventaram a eleição, naqueles dias animados na oração de Ágora, em Atenas.

O ato de votar tornou-se operação complexa, acionado por mecanismos e circuitos eletrônicos, “próxi”, dioramas digitais construídos a partir da nossa memória. Desse intrincado sistema, formado por íntimas correlações dissimuladas, extraem-se teorias e racionalidades a partir de inusitadas intenções lógicas. Delas arrancamos, por fim, ordenamentos suscetíveis de dar ao Estado instrumentos para que ele repulse veleidades que fragilizam o poder político, sob a má interpretação de um conceito ambíguo — da liberdade e da democracia.

A onda mundial de plebiscitos (ou referendum, como queiram, ainda que não se confundam em sua “tecnicalidade”) assola não apenas os países periféricos, como o Brasil e os de origem latina, mas velhas nações, cansadas de guerras e de paz. Estamos a falar, a rigor, de uma consulta direta que contorna os canais formais da representação política, prática comum aos sistemas totalitários.

A Europa regurgita de manifestações populares, clama por democracia enquanto sua gente luta para destruir a democracia que herdaram, gerações atrás. A América dos americanos já não é a mesma. A invasão do Capitólio pôs à mostra o que há de mais abstruso e radical da política americana. Pútin mostra ao mundo que o poder político sem a força das armas morreu com o Tratado de Versalhes…

Por aqui, nestas sobras de América que são Latinas, o tráfico ocupou o proscênio e dá as cartas. E ganhou expressão política considerável, força temida, influenciadora, embora não se conheça ainda o seu poder. Suspeita-se do que é capaz. Sabe-se do que foram capazes por estes corredores andinos.

Dos políticos pouco sabíamos do que eram capazes. Não fomos capazes de avaliar até onde podem ou hão de chegar. Assim como a sua extraordinária capacidade de adaptação à modernidade.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

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