A CORROSÃO DA UTOPIA

A utopia, como formulação filosófica e como resultado do seu uso inadequado, transformando o termo num lugar comum, aproximou o sentido original, pensado por Thomas Morus, das ideologias prospectivas de um mundo ideal. O idealismo, o comunismo, até mesmo o socialismo, pretendem, em suas concepções básicas e ao modo de cada uma, se tornar o lugar da realização da utopia.

No seu sentido imediato, utopia significa o não-lugar. Um ideal a ser alcançado onde todos seriam felizes e viveriam harmonicamente. Seria um retorno ao paraíso, não corrompido pela maldade e pelo egoísmo, por exemplo, em que haveria uma igualdade pacificadora das individualidades. Talvez aí, neste sentido, resida um apagamento do eu e uma projeção do coletivo acima das necessidades do indivíduo, mas suprindo a necessidade de todos. 

Desta compreensão surgem dois problemas que se incompatibilizam numa leitura mais profunda. Um povo que não sonha não pode ser considerado povo, já dizia Rubem Alves. E se o sonho é uma projeção da mente e é individual, tornar a utopia um sonho coletivo seria apaziguar os egos e torná-los cegos, para que cada um precise do outro na caminhada, como se vê na extraordinária metáfora de José Saramago. No seu Ensaio sobre a cegueira, Saramago produz o efeito do sofrimento individual sendo vivenciado por uma cidade, onde a cegueira leva todos ao medo e à incapacidade de ação. Com o decorrer da história, as pessoas se acostumaram às dores das perdas da visão. Da mesma forma como a cegueira surgiu, ela também se foi, mas o mundo já não era o mesmo. A barbárie e a selvageria se tornaram uma face de horror de mundo que já foi belo, dentro dos parâmetros de quem tinha o olhar e cegou. Para esse mundo deteriorado pela violência e pela perda das possibilidades subjetivas de existência, não há outra possibilidade de existência que não seja utópica. Construir ou reconstruir valores que transformem o lugar de horrores em um lugar de felicidade, um não lugar que irá restaurar as possibilidades, passa a ser o desejo que alimentará a construção utópica.

Num país como o Brasil, onde as pessoas se dividem entre as que têm fartura, uma parcela mínima, e as que lutam para comer, a grande maioria, e até as que passam fome e extrema necessidade, precisamos de uma utopia para que a igualdade seja uma conquista coletiva. E isso se arrasta desde o processo de posse e negação do povo, realizados no período colonial, por uma matriz que alternou pilhagem sustentada pela escravidão e distribuição de longas extensões de terra a poucos, para que o subjugo fosse terceirizado e se criasse uma elite alinhada e sustentadora do Estado. 

Seria a literatura uma forma de alimentar sonhos, com a vantagem de alimentar o espírito de um povo muito mais do que religiões. A literatura transforma o povo pelo sonho em consciência e a consciência em utopia. Que se comece a luta para que o povo coma todo dia, como queria Darcy Ribeiro, só depois, devidamente escolarizado, é que se pode transformar pesadelos em sonhos amenos e, depois, em revoluções utópicas. 

Carlos Gildemar Pontes

CARLOS GILDEMAR PONTES - Fortaleza–CE. Escritor. Professor de Literatura da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Doutor e Mestre em Letras UERN. Graduado em Letras UFC. Membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL. Foi traduzido para o espanhol e publicado em Cuba nas Revistas Bohemia e Antenas. Contato: [email protected]