A contraditoriedade do Direito

“Ao contrário da fala, o complexo do Direito não tem sua gênese fundada em uma necessidade universal do gênero humano, mas sim em necessidades peculiares às sociedades de classe”.

“Após Marx e Engels, postula Lukács a tese de que o Direito se constituiu enquanto complexo social particular ­no momento em que surgiu a exploração do homem pelo homem, em que surgiram as classes sociais. O surgimento das classes assinalou uma mudança qualitativa na processualidade social: os conflitos se tornaram antagônicos. Por isso, diferentemente das sociedades sem classe, as sociedades mais evoluídas necessitam de uma regulamentação especificamente jurídica dos conflitos sociais para que estes não terminem por implodi-las.”

“Firmemos este ponto de partida de Lukács, pois é fundamental: a complexificação e intensificação dos conflitos sociais nas sociedades de classe fizeram necessária a constituição de um grupo especial de indivíduos (juízes, carcereiros, polícia, torturadores, etc.) que, na crescente divisão social do trabalho, se especializaram na criação, manutenção e desenvolvimento de um órgão especial de repressão a favor das classes dominantes: o Direito.”

“Ao contrário da fala, portanto, o Direito nada tem de espontâneo no seu desenvolvimento, ele não emerge espontaneamente na vida cotidiana. Diferentemente da fala, ele não é universal. Nos dois sentidos: não é universal no tempo, pois existiram sociedades sem a esfera peculiar do direito; nem é universal por não ser uma exigência ineliminável a todas as atividades sociais.”

“A afirmação, por Lukács, do caráter limitado, não universal, do complexo do Direito não deve nos levar a crer que ele desconheça a necessidade de alguma forma de regulamentação social mesmo nas sociedades sem classes. Argumenta nosso filósofo que, na ausência das classes, a regulamentação social é efetivada sem ter como pressuposto a manutenção da exploração do homem pelo homem. O complexo do Direito, enquanto instrumento social de manutenção da exploração, seria superado por uma regulamentação qualitativamente superior dos conflitos sociais. As coisas — e não os homens — é que seriam administradas.”

“Tal como todo complexo social, o Direito também é intrinsecamente contraditório. A sua ineliminável contraditoriedade específica tem por fundamento o fato de que toda regulamentação jurídica deve abstratamente generalizar os conflitos sociais em leis universais. Todavia, como os conflitos sociais nunca são iguais, estabelece-se aqui uma ineliminável contradição entre a homogênea abstratividade da lei jurídica e a infindável diversidade dos conflitos sociais. Em outras palavras, o Direito apenas pode existir almejando o impossível: construir uma ordem jurídica que torne iguais casos concretamente distintos. A universalidade da lei só pode, por isso, ser abstrata e estar sempre em contradição com os casos concretos, particulares.”

(Trecho de um dos capítulos do livro Para compreender a Ontologia de Lukács, de Sergio Lessa, editora Unijuí, 2012)

Sobre o autor:

Compartilhe este artigo:

A contraditoriedade do Direito