A carroça de Arjuna

Arjuna está numa carroça, indo para o campo de batalha. Chega Krishna… Todo poeta tem uma musa, seja ela uma mortal, seja ela uma ninfa filha do esperma de um Urano qualquer, que perdeu o falo para um filho Cronos qualquer. Então… o que existe de fragmento do filósofo Parmênides é principalmente o que foi possível resgatar de um poema intitulado “da natureza (pois trata da physis) em que ele é arrastado, arrebatado – vozes de “glória, senhor!” ao fundo – em um carro por uma musa que não lembro quem.

Existe uma carta do tarô, a do carro – os gregos são, antes, uns gaiatos. Então… o rapaz, Parmênides, tem uma visão. Deus sabe se ele é um místico ou um filósofo um poeta inspirado ou um racionalistazinho qualquer… se ele é um profeta, um louco ou um lógico. Esses filósofos gregos são bem gaiatos mesmo, eles ficam tentando ser conceituais e lógicos, mas estão sempre encontrando nos mitos, nas imagens, nas narrativas antigas algo de metafórico em relação ao que querem dizer… Aí Parmênides me aparece com um poema filosófico em que ele é arrebatado num carro/carroça aos céus para ter, mediante uma musa, uma visão.

E o que ele vê? Além da imagem da cidade, três coisas. Uma, é necessário que pensar seja o mesmo que ser; outra, do ser a gente só pode pensar o que é, o que não é não pode ser pensado, assim, é necessário que o que é seja e o que não é não seja. Um cavalo do carro é o ser, que se equivale a pensar – se não pode ser pensado não é, se não é não pode ser pensado; o outro cavalo é o não-ser, e para ele: silêncio. É lógica binária: ou é ou não é. Enfim, entre um cavalo e outro da biga, no centro do carro, indo à guerra… quem se encontra? A doxa (um palavrão: δόξα), a opinião dos mortais. Se ela segue o caminho do ser, alcançado pelo caminho estreito de um pensamento bem conduzido, logicamente conduzido, então ela trilha para o caminho da verdade, aleteia (outro palavrão: ἀλήθεια); se não, é engano, permanece mera doxa, se perde no não-ser, e para este: silêncio.

Tinha que começar pela cosmologia grega, para então entrar em como o Parmênides vai se posicionar. Mas o importante é que no Parmênides o ser é uma categoria eterna que nem no diálogo do Arjuna e do Krishna (só que aqui não tem mundo espiritual, reencarnação etc.), inalterável, infinita, circular, porque se ela fosse finita, transitória, mutável não poderia ser fundamento de verdade alguma. A verdade seria incorruptível à passagem do tempo e ao engano dos sentidos. Então Parmênides acaba sendo um imobilista e um identitário, a verdade é algo inalterável, idêntica a si mesma e é dada a partir dessa identidade entre o pensamento e o ser; o próprio ser tem estatuto mental, como diz a primeira lei hermética dos egípcios, que os gregos chamam de logos.

Heráclito parece não ser muito fotogênico. Na tela do renascimento, naquele quadro Escola de Atenas ele está melancolicamente sentado fora, apartado do centro; isso mesmo, ele era misantropo, não participava da política, no entanto, veja só, o melancólico misantropo é o pensador mais diretamente ligado às discussões políticas revolucionárias. A ele está ligada a dialética, o dualismo, meu Deus, o dualismo Satanás; o grande divisor, o que traz a contradição, a polêmica, a discórdia. Para ele, Heráclito, como para todo grego do período clássico, o logos (no evangelho: no princípio era o verbo e o verbo se fez carne) é o que é comum, está em tudo, mas não é identidade, é pólemos (palavrão: πόλεμος). Dualismo mas não o dualismo do Tao, porque o Tao é complementarpara Heráclito o único fundamento, o único ser, a única coisa que permanece no mundo é a própria mudança: o ser não sendo, sendo e não sendo, o devir.

O que há de comum entre ambos é a potência que fala neles, o logos. Platão vai juntar os dois, Hegel também, porque neles ainda existe uma oposição não resolvida entre identidade e diferença, movimento e repouso, mas ambos (Parmênides e Heráclito) concordam que o logos, o pensamento, o mental é que constitui todo ser. Physis é natureza, eles estão discutindo a arqué da physis, o princípio fundamental de tudo que é. E a carroça?

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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