A BARCA DA TRAVESSIA DERRADEIRA, por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Profundamente desolada, visivelmente fragilizada, no semblante as marcas indeléveis do sofrimento e da dor, o lenço branco a recolher os aquosos efeitos do irreprimível pranto, apoiada no braço direito da única filha, uma bela jovem de postura altiva, imperturbável, serena – apesar da excruciante vivência: a perda do pai –, advogada de ofício, a mulher adentrou a sala de visitas da casa da mãe, onde ocorria o velório do marido, parou ao lado do esquife, dispensou um olhar terno ao morto e, atingida por um angustiante desespero, inculpou-se em tormentosos gritos, os quais ressoaram pelo ambiente lutuoso, lúgubre, recendente a vela em chamas, repleto de óculos escuros de variegados modelos a esconder olhos lacrimejantes de familiares, amigos e até curiosos (cujo sentimento comum, ali não expresso em palavras, mas revelado no silêncio cerimonioso, mesclava espanto e incompreensão ante a insensibilidade da Morte, ao ceifar a Vida de um ente querido, tão jovem, tão bom):

– Meu Deus! Eu matei o meu marido! Eu matei…!

A filha interrompeu a mãe, repreendendo-a com firmeza:

– Não diga isso! Não se culpe assim, publicamente! A senhora não matou ninguém. Preserve-se, por favor!

De repente, um soluço bem mais profundo, mais demorado, parecendo um surdo ronco explodindo do mais recôndito do ser, reverberou pela sala inteira. As pernas fraquejaram, o corpo amoleceu, a cabeça pendeu para a frente… E a mulher desmaiou.

Mãos e braços generosos logo acudiram e acomodaram a viúva desfalecida na cama do quarto contíguo que, nos primeiros meses de convivência matrimonial, a mãe – já viúva e solitária – ao casal cedera até que o apartamento lhe fosse definitivamente entregue. Ali estrearam, há algumas décadas e à plenitude, os amores, os louvores e os dissabores – os encantos e os desencantos – da sempre complexa e exigente vida a dois.

(…)

No trajeto do hospital para o apartamento – sala-quarto-cozinha – recentemente adquirido, com a generosa ajuda da filha, no décimo andar de edifício com frente para o mar, a mulher, bem acomodada no banco do carona do Corola branco-pérola da bem sucedida advogada, narrou o desentendimento havido entre ela e o marido, o qual culminou no infarto que o levou a óbito.

Segundo ela, o casamento nunca entrara em crise, mas, aqui e acolá – principalmente após a aposentadoria de ambos, de que resultou maior convivência cotidiana –, eles eram instados a resolver pequenos conflitos, inexpressivas discordâncias, insossas desavenças. Algo que sempre consideraram normal, porquanto não abalava sequer a sólida união que, por décadas, juntos construíam e mantinham.

Na noite anterior, crucial e fatídica, enquanto ela assistia à novela das nove em sua poltrona preferida, o marido lia Um certo capitão Rodrigo¹, do gaúcho Érico Veríssimo. Ele a surpreendeu quando usou o controle remoto para abaixar o som da tevê, tão logo se iniciara o intervalo comercial. Após pedir a atenção dela, leu em voz alta um trecho em que o capitão dizia ao padre ter ouvido falar que no céu não tinha jogo, nem bebida, nem baile, nem mulher, e que, por isso, preferia ir para o inferno. E isso rendeu uma boa conversa sobre fé, religião, igreja; marido e mulher, mantido o respeito mútuo, adotaram posicionamentos antagônicos: ele, incréu, na trincheira defendida pelo devasso capitão; ela, contrita, no altar venerado pelo decoroso padre. Deus e o diabo. Céu e inferno. Aquilo certamente não iria dar em nada. Até que ela ressaltou a passagem bíblica que assegura ser o inferno o lugar do choro e do ranger de dentes; e o marido, sorrindo sarcasticamente, caçoou: Como?! Se alma não chora nem tem dentes; os do corpo com ele permanecem e vão pra debaixo do chão?! A mulher se zangou e o atrito entre eles se instaurou. Discutiram. Brigaram. Trocaram farpas, impropérios, insultos, injúrias. Aquilo virou uma bola de neve, ou melhor, de fogo. Esbraseante e destrutivo. E o clímax emergiu da referência que, ainda ressaltando o fato de no céu não haver mulher, daí a preferência dele pelo inferno, ela fez a um provável amor platônico pelo marido nutrido em relação a uma jovem senhora que trabalhara para o casal em tempos pretéritos, cuja dispensa se dera – segundo a patroa – por justíssima causa. Ele, que tantas vezes já negara esse improvável adultério e, agora, mais uma vez, via o assunto ser trazido por ela ao cerne da discussão, levantou-se furioso, jogou raivosamente o livro sobre o sofá, aproximou-se dela com o dedo em riste, ensaiou uma advertência verbal… a boca se abriu, mas som nenhum dela saiu. Prendeu a respiração, esbugalhou os olhos, retesou todo o corpo, girou-o um pouco pra direita e… desabou, enrijecido, no tapete acinzentado, aos pés da mulher.

Um vento morno, surgido não se sabe de onde, varreu o ambiente, causou arrepios na quase-viúva e, com um assovio medonho, pavoroso, esvaiu-se pela brecha inferior da porta de acesso ao apartamento.

Ainda com frágeis sinais vitais, o homem recebeu de solícitos paramédicos o atendimento emergencial. Conduzido ao hospital, profissionais habilitados lutaram bravamente contra Tânatos, a personificação da morte. Debalde.

(…)

Ligaram imediatamente para o irmão mais velho dela, médico e psicólogo, espírita e sensitivo, cuja resposta foi curta e serena: Estou chegando! E chegou. Após um olhar rápido e pesaroso para o cunhado, lívido, a palidez do rosto revelando a crueza do fim, encaminhou-se para o quarto, cuidou de evacuar todos que ali ainda permaneciam, exceto a sobrinha, a quem pediu para fechar a porta e, apenas para cumprir o rito procedimental aplicável ao caso, porquanto pudera antecipar a plena compreensão da gravidade da situação, dedicou-se ao minucioso exame da irmã, ao sentir dos outros aparentemente enfermiça: pulso e pescoço, olhos e narinas – sem pulsação, sem reflexos, sem respiração; estetoscópio que invade o interior do colo, do peito: auscultação cardíaca e respiratória – nada dos sinais vitais; apôs a mão espalmada na fronte da mulher, o polegar entre os sobrolhos e as pontas dos outros dedos na têmpora direita, concentrou-se, os olhos semicerrados, acionou a glândula pineal – a sede da alma ou a conexão corpo-alma – e verificou, ante a percepção de inocorrência dos sons oscilantes das frequências binaurais, que naquele corpo já não mais se continha a alma que certamente já se elevara ao plano superior. Num misto de respeito e dor – contida, não sabe como – acariciou os ondulados e grisalhos cabelos da irmã e, num gesto de carinho, fechou-lhes delicadamente os olhos já sem brilho. E, com a tranquilidade adquirida em muitas vivências idênticas, sentenciou:

– Nada mais há que um pobre médico possa fazer. Agora ela está nas mãos de Deus.

E o infarto fulminante serviu à Morte, diáfana, translúcida, insensível, no ato – pra ela demasiadamente corriqueiro – de pôr fim à Vida. No caso, do casal.

(…)

Quando a alma da mulher chegou ao porto de passagem, uma estreita faixa de terra margeando os rios que separam o mundo dos vivos do dos mortos – um de águas cálidas, agitadas, furiosas, tormentosas; o outro de águas álgidas, tranquilas, remansosas, transparentes –, a do marido ainda negociava com Caronte, o barqueiro da travessia derradeira, os custos da viagem (em vida, ele também fora assim: zeloso e minudente, nos negócios que fazia sempre avaliava detidamente os prós e os contras, as vantagens e as desvantagens, e, assim, alongava no tempo, o mais que podia, a condução de todos eles, postergando ao extremo os seus desfechos). Lógico que ali não se tratava de dinheiro, embora em tempos longínquos, houvesse o costume de colocar uma moeda na boca do defunto, com a qual a sua alma compensaria o barqueiro pelo serviço de transporte então prestado. Ali a moeda era bem outra.

E a alma da mulher dirigiu-se à do homem, questionando-o:

– Por que tu ainda negocias com ele? Não percebes ser ele, em toda a sua assombrosa fealdade, o Diabo², o barqueiro do Mal, que, se o convenceres a entrar no batel dele, te conduzirá pelas tormentas até a profundeza dos infernos? És, por acaso, o Enforcado, o Onzeneiro, o Judeu, o Corregedor, o Sapateiro, o Fidalgo²? Certamente não és. Tu pareces mais com o Parvo²; embora às vezes rude e ignorante, tens um bom coração e és temente a Deus. Eu em nada me identifico com Brísida Vaz², a alcoviteira, a cafetina. Portanto, a nossa travessia derradeira não se fará pela barca do horripilante e detestável Caronte. Vem. Me acompanha. O rio que merecemos atravessar não é este por quem te sentes atraído, e sim o que está à nossa direita. Caminhemos até ele.

Conduzidos por um Anjo² que, adejando suavemente sobre as águas tranquilas do rio do Bem, estimulava-os a prosseguir na travessia, as duas almas – mulher e marido na existência terreal – deixaram-se envolver num abraço reconfortante daquelas águas mornas, límpidas, odoríferas, balsâmicas, sentindo que ali se purificavam, purgando os pecados que, cometidos em vida, ainda não tinham sido perdoados, o estágio derradeiro antes do acesso ao pórtico da Eternidade.

 

Post scriptum:

¹ A novela Um certo capitão Rodrigo é, cronologicamente, o terceiro episódio de O continente que, com O retrato (parte II) e O arquipélago (parte III), compõem a trilogia O tempo e o vento, obra do escritor gaúcho Érico Veríssimo, escrita na segunda fase de sua carreira.

² Personagens da peça Auto da barca do inferno, do dramaturgo português Gil Vicente. Representam: Diabo – o condutor da barca do inferno; Enforcado – a falta da fé e a perdição; Onzeneiro – a usura e a agiotagem; Judeu – os infiéis, os alheios à fé cristã; Corregedor – a burocracia da justiça interesseira; Sapateiro – o enganador do povo; Fidalgo – os nobres ociosos; Anjo – o condutor das boas almas até o céu, destino do Parvo.

 

“As tais pessoas que todo mundo diz que vão pro céu por serem direitas e sem pecado são a gente mais aborrecida que tenho encontrado em toda a minha vida. Tenho conhecido muito patife simpático, muito pecador bom companheiro. Se eles vão para o inferno, é para lá mesmo que eu quero ir.”

(Um certo capitão Rodrigo, de Érico Veríssimo)

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.