COLONIALIDADE, RACISMO E LUGAR DE FALA

A categoria colonialidade, uma das mais fecundas do pensamento decolonial, a considerada aglutinadora da rede de pesquisadores Modernidade/Colonialidade, desafia-nos a quebrar o nosso sistema de autoengano ou de autoilusão. Ela nos faz entender e tomar consciência que mesmo os considerados conscientes, os pensadores críticos, nós, os que nos situamos no chamado campo da esquerda, reproduzimos comportamentos racistas e formas de dominação que nem sequer chegamos a imaginar que existem em nós de forma tão arraigada. Além disso, a categoria colonialidade nos ajuda a entender e a compreender que os que sofrem com o racismo também o reproduzem. Portanto, uma grande contribuição da categoria colonialidade é quebrar os essencialismos, a ideia de que existem os dominadores e exploradores de um lado e os dominados e explorados de outro, em forma pura. Assim sendo, saber quem oprimimos e como, quando lutamos por emancipação, é um ato radical.

​A dicotomia entre luta de classes e luta identitária, ou a polêmica entre fala partidária e o lugar de fala, é a colonialidade de poder pensada e reproduzida como um dos eixos de dominação e opressão. Trata-se de uma gramática de posse do meu discurso, de minha fala, de minha narrativa autêntica. É a gramática política mercantil da reserva de mercado de fala, do discurso, uma gramática da propriedade sobre a violência simbólica. Trata-se de fazer da nossa (de um grupo indentitário) opressão, de nossa indignação e de nossas revoltas e sentimentos uma narrativa na gramática política daqueles que nos oprimem. Na gramática mercantil da propriedade existe uma fala que me pertence, uma fala que é só minha e ninguém tem autorização ou legitimidade de falar sobre ela.

​Quando o lugar de fala ou as lutas identitárias são pensadas na gramática política da colonialidade do poder, elas perdem a possibilidade de coexistirem com vários universais, ou seja, de construírem uma identidade na política ou invés de afirmarem uma política de identidade, renunciam a pluriversalidade, ou a universalidade, esta que não pode ser realizada pela modernidade porque o universal moderno é um universal abstrato.
​Na narrativa discursiva da colonialidade o problema não é que o subalterno exista, mas que seja visível, que ele seja, trata-se da colonialidade do ser. Daí, a repressão, a invisibilidade, o apagamento. Se o outro, o diferente, existe e é visível, toca-me, afeta-me, atravessa-me, cria relações eu-outro, obrigando-me a transformar-me, então, vem a violência simbólica e material: a eliminação do outro, que só pode existir em silêncio, só pode existir tendo o seu ser colonizado, só pode existir como não ser.

​Com a colonialidade do ser o outro não pode ocupar o mesmo lugar, tampouco ter as mesmas coisas e nem ter a mesma fala. A igualdade não pode existir, e para que a desigualdade impere é preciso eliminar a liberdade, para que com ela não se queira ser igual. E ser igual significa ter o direito de ser diferente.

​O grande êxito do sistema-mundo colonial moderno, que opera a colonialidade do poder, tem sido fazer com que os que são socialmente dominados e explorados pensem epistemologicamente como os dominantes. Nesse processo, é muito importante, segundo Walter Mignolo, entender a distinção entre localização social e localização epistêmica, sabendo que uma coisa não se reduz a outra, pois se pode estar socialmente localizado do lado da dominação de uma relação de opressão (Friedrich Engels, Karl Marx, Fidel Castro), como a luta de classes, e assumir uma perspectiva epistêmica a partir do dominado da mesma relação de poder. Da mesma forma, pode-se estar socialmente localizado do lado dos dominados e subalternizados, numa relação racista e homofóbica (Sérgio Nascimento de Camargo, Fernando Holiday) e se colocar do lado dos dominadores e subalternizadores.

​O papel do intelectual, numa perspectiva decolonial, não é o de falar ou de representar os “ou” a perspectiva dos dominados, dos explorados e subalternizados (operários, negros, indígenas, homossexuais, mulheres, sem teto, sem terra, etc.), mas o de defender a mudança geográfica da razão ou a geografia do conhecimento como instituição política e epistêmica, seu compromisso é com a defesa de uma ecologia de saberes, das epistemologias do sul, do pensamento de fronteira, da decolonialidade do saber. Nesse sentido, o lugar de fala, quando compreendido como a posse de uma fala verdadeira, legítima ou autorizada, porque proferida por um sujeito legítimo, é uma reprodução da gramática da colonialidade do poder como um “discurso competente” que tem um dono, que quer se impor como reserva de mercado de bens simbólicos, é uma forma de silenciar o outro. Todavia, todos têm o direito de tornar claro o seu lugar de fala, de demarcar o seu lócus de enunciação.

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