Luz orvalhada da manhã

Luz orvalhada da manhã penetra na janela entreaberta em que dorme o casal. Doces são os gostos na boca de amantes recentes, como são amadurecidos os de longa data que não perderam o viço, pois o tempo os melhorou como ao vinho.

Não, deixei Eros esperando na esquina em que não voltei. Quantas promessas, sonhos de uma noite de verão acesos e logo apagados em acessos de medo a conta gotas desperdiçadas tua face meiga e olhos que antes reluziam como algumas dessas belas pedras que damos de presente.

Luz orvalhada na entranha da sala em que não mais te vejo, em que não mais te beijo e abraço pelas costas com um carinho de café e manteiga no pão. Sociólogos chamariam desencanto; psicólogos diriam luto não elaborado; filósofos, ressentimento, vontade de nada – nada de vontade.

Não, a mim cabe encontrar na ilha a forma que dará conformação a uma tecitura daquelas de tecelão, tricô, renda e afins em palavras de sentido e um tanto de solidão; fratura exposta que não clama por significação nem brinca mais de esconde-aparece. A vida apenas, afinal e enfim consumada n’alguma formação de caráter.

Luz orvalhada da manhã em que nasci a certa altura da vida sem remorsos ou muitas expectativas de futuro. Permanece, entanto, alguns valores antifascistas e uma desconfiança serena e severa, cômica até, quanto às máscaras de caráter que o mundo cria e, assim, instaura e mantém clivagens que nada dizem do que vale a pena.

Labor de palavras, amanhecer tão doce e sem abraço, tão sutil e sem falta alguma. Solitude inesperada e um ar de assim se segue, nas mínimas coisas, o curso do mundo, e assim se segue, atento ao detalhe, o olhar de cada dia.

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