A PRIMEIRA VEZ DE MUITAS VEZES, por Íris Cavalcante

Todos os dias, ao romper da manhã, temos a experiência de uma primeira vez. É ali que tudo se reinicia. É a primeira vez que encontramos aquele dia, com suas tonalidades e promessas próprias.

Durante toda uma vida, somos contemplados com algum deslumbre de uma primeira vez, mas em meu caso particular, a experiência mais marcante foi a chegada de João.

Era uma tarde de terça-feira quando recebi o resultado de um exame que anunciava sua vinda. Eu era uma estudante universitária, “cabelo ao vento, gente jovem…” casada há apenas três meses, com planos para o futuro que ainda não incluíam uma criança. Senti o chão sumir sob meus pés, um formigamento no corpo e um quase desmaio.

Aos poucos, João foi ocupando lugar em minha vida e em meu corpo. Avolumaram-se peitos e abdômen (que nunca mais foram os mesmos). Meu corpo foi adquirindo uma forma arredondada, ao mesmo tempo em que crescia um amor, sublime amor, que nunca imaginei possível. Quando o útero já era pequeno demais para acomodar a grandeza daquele amor, então ele veio. Foi um momento lindo, imortalizado em minha memória. Meu rosto contraía-se e distendia-se, eu não sabia se ria ou chorava, quando o vi pela primeira vez. Peguei-o no colo e amamentei-o. O mundo reduzia-se a dois, mãe e filho. O mundo estava completo!

Ali, tive a consciência de que avançava uma geração e passava de alguém que foi cuidada, para cuidadora de alguém, embora eu continuasse precisando de cuidados, como preciso até hoje. Mas era uma inevitável mudança de status, de prioridades, de perspectivas. João apropriou-se de um espaço emocional em minha vida, só seu. Dediquei-me completamente à maternidade, tranquei a faculdade, adiei projetos profissionais, poemas foram parar na gaveta. Os primeiros passos na literatura foram substituídos por passinhos inseguros que adquiriam firmeza com a minha presença. Depois vieram os primeiros dentinhos, as primeiras sílabas, a primeira febre de 39 graus, a primeira noite em que não dormimos os dois… Ele, desconfortável com a febre alta; e eu, vigilante nos cuidados, esquecia qualquer cansaço. Mãe full time.

Eu estive lá, em todos os seus momentos importantes: o primeiro dia na escola, a primeira noite do pijama, a primeira namorada; assistimos juntos à seleção brasileira de futebol ser pentacampeã, era a primeira vez que ele via algo daquela grandeza.

Acho que também protagonizei um momento único na vida do João. A primeira vez em que ele viu a mãe, não como a heroína de seu imaginário infantil, aquela que sempre cuidava de suas necessidades primárias, que fazia a mágica para curar a dor com um “sopro no dodói”, e o salvava de apuros. Mas quando ele me viu como uma mulher comum, com fraquezas e limitações, quando eu não pude dar as respostas que ele precisava ouvir. Uma mãe com uma rotina de trabalho intensa, dentro e fora de casa, que não define o certo e o errado, mas que deixa exemplos de uma vida; uma mulher movida por sonhos e recomeços, e que nem sempre consegue manter a serenidade diante do caos. Ali, ele vê que o mundo de sua mãe e de todas as mulheres é bem mais difícil do que o seu, e mãe e filho se reconhecem como parceiros e amigos, desde o nascimento até a eternidade.

Naquele momento, eu me livrava da condição meio mística, meio religiosa, que a figura da mãe representa na fantasia do filho, e assumia a condição verdadeiramente humana de uma mãe. Renato Russo me diz aqui: “A primeira vez é sempre a última chance”. Para mim, essa é mais uma primeira vez de muitas vezes, e sim, meu caro Renato, talvez seja minha última chance. Para mãe e filho, que se dê o início de um novo ciclo em nossas vidas. O tempo do recomeço.

Fortaleza, maio de 2019.

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