MESA DE BAR – Ordinários ofícios, por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

“Rezemos para que a raça humana jamais escape da Terra para espalhar a iniquidade em outros lugares.” (C. S. Lewis, escritor britânico).

[Epígrafe ao Capítulo 7 de A Cabana, de William P. Young].

– Amigos, na condição de decano da confraria, cumpre-me lembrar as regras não-formais desta fase de nossos encontros que costumamos chamar de “ordinários ofícios”. Assim, tão logo se defina o tema sobre o qual nos debruçaremos, cada um de nós terá uma única oportunidade de falar, dispondo do tempo que julgar necessário à exposição de seu pensamento, de sua opinião, de sua crítica, de sua inteligência; ou poderá, se assim melhor lhe aprouver, manter-se simplesmente em silêncio, abstendo-se de manifestar-se. Aqui, ninguém se obriga a nada. Caso ninguém demonstre interesse em discorrer sobre o tema dado, a fase simplesmente se esvai e, então, passamos à seguinte. Não é demais salientar, que, entre cada participação, nos submeteremos a uma rodada completa do néctar dos deuses, até para que possamos clarear e nortear as nossas inspirações.

– Mestre, o tema pode ser analisado sob qualquer perspectiva, não é?

– Sim. Sem mordaças, sem censuras, sem críticas, sem ressalvas e sem interrupções. O pensamento de cada um, aqui, é soberano. Senhores, o tema de hoje chegou às minhas mãos há pouco tempo, em guardanapo de papel. Quem mo entregou foi o proprietário deste tão aprazível e aconchegante recinto, a quem peço que nos preste os devidos esclarecimentos a respeito.

O dono do bar e restaurante aproximou-se do grupo e, solícito, explanou:

– Pois bem, amigos. Eu apenas cumpri o pedido daquele senhor que, há pouco, brindou à Lava-Jato. Ele é professor universitário aposentado. Costuma vir aqui sempre sozinho, senta-se sempre àquela mesa, sorve algumas cervejas, não muitas, saboreia um tira-gosto que preparo ao seu modo, medita como se estivesse olhando pro nada, faz rápidas e curtas anotações em uma caderneta de bolso. Quando se sente satisfeito, liga para alguém e logo um carro preto para aí em frente. Então, ele se levanta, deixa sobre a mesa uma cédula que sempre mais que corresponde ao consumo e ao serviço, sai lentamente sem cumprimentar quem quer que seja, assume o posto de carona e vai-se embora. Hoje esse rito foi alterado. Ele veio até mim, entregou-me esse papel dobrado ao meio e me pediu: “Por favor, passe às mãos do mais velho do grupo, mas apenas após alguns minutos de minha saída”. Assim fiz. Fiquem à vontade.

– Obrigado, amigo! – O decano desdobrou o papel, leu o que nele se continha e complementou: – Senhores, o tema de hoje é AQUI O NEGÓCIO É DIFERENTE!

Os confrades se entreolharam, como se buscassem divisar alguma ponta solta da meada para começar a desfiá-la. Saborearam, com estilo e classe, uma tulipa de cerveja geladíssima. Não resistiram à delicia do tira-gosto, à base de carne de sol. E o silêncio se fez ouvir por algum tempo. Até que um deles, após um leve pigarreio, assumiu, com calma e tranquilidade, o comando do primeiro ofício.

– Não faz muito tempo, assisti, numa dessas redes sociais, a um vídeo que me deixou deveras intrigado. Nele, um respeitável profissional do jornalismo de alto nível não poupava críticas ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em face da publicidade dada aos políticos cujo eventual envolvimento no Petrolão fora objeto de delações premiadas oferecidas por empresários e dirigentes ligados à Odebrecht, a fonte primária e generosa das falcatruas que levaram o país à gravíssima situação em que ora se encontra.

“Basicamente, duas linhas de raciocínio serviram de curso ao escoamento da posição que tão veementemente defendia. Numa das margens, o estado de presunção de inocência ou o princípio da não-culpabilidade, que oferece ao acusado a prerrogativa de não ser considerado culpado por um ato delituoso até que a sentença penal condenatória transite em julgado. Com efeito, a lista de Janot, que acabou virando a lista de Fachin, compunha-se de pessoas que ainda se submeteriam aos procedimentos investigatórios, nada assegurando, em sede de Direito, que houveram elas – ou qualquer uma delas – cometido as ainda supostas ilicitudes. Na outra margem, uma questão bem mais crucial, sob o enfoque socioeconômico, a qual, segundo o nobre jornalista, Janot teria feito tábula rasa, com uma grave, em face do cargo público que ocupa, dose de irresponsabilidade, ao expor à execração pública parlamentares sobre cujos ombros pesa o destino imediato e futuro da Nação. Referia-se, então, à indispensável governabilidade, sempre assentada no popular “toma lá, dá cá”, de custos expressivos para o erário, mormente em época de seriíssimas crises, de toda ordem e de vários matizes, como as atuais.

“Aí, amigos, ele apelou. Na concepção dele, em países desenvolvidos – Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Japão –, esse tipo de comportamento de uma autoridade constituída jamais se verificará, até porque os agentes públicos de lá não expõem suas vaidades pessoais em detrimento da governabilidade, ou seja, os interesses nacionais sempre estarão bem acima dos interesses individuais.

“Para não me estender mais ainda, defendo, amigos, a tese de que, ante a evidência da prática absurda de desvios de verbas públicas, de assalto ao erário, em valores estratosféricos, por agentes públicos mancomunados, em consórcios nefastos, lesivos, danosos, com empreiteiros e políticos que se locupletavam à plena luz do dia, houve, sim, um crime de lesa-pátria, de natureza pública, em que a vítima é a Nação e a essência da Nação é o povo. Então pergunto: o que o povo quer em situações de igual jaez? E respondo: transparência, Justiça rápida e apenações compatíveis com a gravidade dos atos delituosos cometidos, além da devolução do quantum surrupiado, rapinado.

“Raciocinemos, com efeito. Se, até em processos que correm sob segredo de justiça, à vítima é assegurado o direito ao acompanhamento do litígio, em todas as suas fases, no caso concreto, a vítima é o povo, e a ele deve ser concedido o direito de conhecer todas as etapas do feito. Ora, proteger com o manto da lei pessoas cujos indícios são robustos a sugerir sua culpabilidade no cometimento de ilícitos de natureza pública equivale, a meu ver, a negar à vítima – o povo, pois – o que lhe é de direito, o que lhe é de justiça. Transparência, pois. Queremos, sim, saber quem será investigado, quem será denunciado, quem se transformará em réu, quem será condenado e que tipo de condenação lhe será imputada. É um pouco do muito que eles nos devem: a confiança que neles depositamos por meio do voto.

“Há um outro aspecto que reputo merecedor de destaque em tudo isso. Não vejo como defender a velha e puída tese da comparação com qualquer outra nação, outro país, outro povo. Eles são eles e suas circunstâncias – e que sejam! –, e nós somos nós e nossas idiossincrasias! E mais. Quantos fortes candidatos à Casa Branca sucumbiram, em meio à trajetória para o poder, porque a mídia lhes atribuiu o cometimento de ato – um caso extraconjugal, por exemplo – que o povo americano rejeita, sem acolhimento de justificativas ou desculpas?! Quantos primeiros ministros ingleses se viram obrigados a renunciar ao governo por terem “metido o pé na jaca”?! Quantos respeitáveis japoneses, gestores da coisa pública, puseram fim à própria vida, envergonhados por haverem praticado atos que atentaram contra a sua condição de homem público?! Querer que, no Brasil, as coisas aconteçam como ocorrem lá fora equivale a pretender desmerecer a nossa mais genuína forma de ser ou, o que é bem pior, a entender que devamos ser mais idiotas do que na verdade já nos fazem. É, por fim, não admitir uma regra subjacente à nossa peculiar condição de ser humano: AQUI O NEGÓCIO É DIFERENTE! E bem diferente!”.

Silêncio sepulcral. A confraria experimentou um estado de ânimo variando do entorpecimento ao êxtase. Ante as regras não-formais ou mesmo sem observância a elas, ninguém se manifestou, por gestos ou palavras. Os olhares trocados entre eles denunciaram a concordância com tudo o que ouviram. O decano então os convidou ao brinde ao deus grego do vinho. E isso fizeram à base de cerveja estupidamente gelada.

Após isso, os “ordinários ofícios” prosseguiram normalmente.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.