E tudo continua como antes, por Luciano Moreira (Xykolu)

– Consultório do dr. Alaylson, bom dia!

– Bom dia, amiga. Gostaria de confirmar o exame de mapeamento de retina marcado pra hoje.

– É o sr. Xykolu?

– Sim.

– Confirmado, senhor. A partir das 8 horas, por ordem de chegada.

Após o desjejum, à base de salada de frutas, saboreio, com vagar, o fumegante cafezinho com leite e adoçante, cuja principal função consiste em me despertar para a vida que lá fora flui.

Uma rápida passada de olhos pelo jornal e manchetes pouco apelativas despertam-me a atenção: uma me informa que devo acessar o sítio da Sefaz e baixar o boleto do IPVA, com duas modalidades de pagamento, a critério do contribuinte: à vista, com cinco por cento de desconto, até o fim do mês em curso, ou em cinco suaves parcelas mensais, vencíveis a cada dia dez dos meses subsequentes; outra antecipa que o IPTU baterá em nossas portas [(na minha e na sua, caro(a) leitor(a)] ainda na primeira quinzena de janeiro – é o que assegura a Sefin; e uma outra me prepara para a possibilidade, quase real, de não haver, pela segunda vez consecutiva, a correção anual da tabela do imposto de renda, tão defasada que já alcança os de baixa renda: dois salários mínimos ou algo bem próximo disso. Ah, não nos esqueçamos, trabalhadores que somos, da espada de Dâmocles a nos ameaçar com a elevação – de 11% para 14% – da contribuição previdenciária; para os inativos, dinheiro que compulsoriamente damos de esmola ao sistema – ou seria esquema?! A fome do cobrador de impostos é insaciável; desde os bíblicos tempos.

Apronto-me. Confiro os documentos, a requisição do exame, a carteirinha do plano de saúde. Ligo para uma central de táxi [aqui pra nós: ainda não sei como usar o uber! Nada pra estranhar em um matuto ultraconservador!]. Como vou ter de dilatar a pupila, nada recomendável seria assumir o volante de um carro. A operadora garante-me o atendimento em poucos minutos. Recordo-me de uma crônica de Millôr – ou seria de Cony, de Veríssimo ou, quem sabe, de Rubem Braga: se a jovem do balcão de atendimento lhe pedir para aguardar um minutinho, prepare-se para uns quinze; agora, se ela prometer “um segundo apenas”, isso é coisa para cerca de meia hora.

Dito e feito. O tempo passa. O tempo voa. E nada. Continuo numa espera aparentemente à toa. Penso em ir até à Jovita. Desisto ante o risco de ser assaltado.

Refaço a ligação. O comando da corrida já houvera sido dado há algum tempo. É o que me diz a telefonista. Iria tentar localizar o taxista.

Após vinte e alguns minutos de espera, eis que a condução até mim chega. O jovem motorista me saúda com um bom-dia de sorriso forçado. Respondo em igual tom, já lhe fornecendo as coordenadas de meu roteiro pelas ruas e avenidas da cidade que aprendi a amar. Ele, então, me pede desculpas pelo atraso e…

– Senhor, no momento em que recebi, pelo celular, o comando de sua corrida, dois jovens, muito bem vestidos – camisas, calças e sapatos sociais, mais parecendo evangélicos –, atravessaram a moto bem em frente ao meu carro. Logo pressenti: é um assalto! Enquanto o motoqueiro sacava e apontava a arma em minha direção, o garupeiro se aproximou e encostou o cano do revólver na minha testa. Senti medo de morrer ao ver as pontas arredondadas de chumbo das balas que recheavam o tambor. Chamando-me de vagabundo, me fez sair do carro, ficar de pé, pôr as mãos com dedos cruzados na cabeça e, após busca rápida e nervosa, levou-me o celular, o relógio, a aliança e a chave do carro. Um colega taxista que ali também faz ponto não escapou da ação dos marginais, perdendo celular e relógio. Nós tivemos muita sorte. Ele estava com oitocentos reais no bolso para pagar uma conta tão logo as agências bancárias abrissem. Eu costumo guardar a minha carteira de cédulas e documentos no porta-luvas do carro. Assim que se evadiram, o colega me levou até a minha casa, onde apanhei a chave reserva do carro e, assim, pude atender a sua chamada. E aqui estamos.

– Amigo, agradeça a Deus por não ter acontecido o pior…

– Pois é. O da moto, mesmo sem qualquer reação nossa, ainda gritava repetidas vezes: Atira nesses vagabundos! Talvez porque não tivéssemos muito a oferecer… É uma sensação horrível!

Por todo o trajeto, conversamos sobre situações de violência urbana vivenciadas por parentes, amigos ou conhecidos. Em todos os casos, os danos psicológicos superam as perdas materiais. Desde ser chamado de “vagabundo” ou “vagabunda” até ter a vida sob a mira do revólver amedrontador de um vagabundo.

Exame realizado. Diagnóstico e tratamento. O olho direito mais afetado que o esquerdo, sentenciou o oftalmologista. Devo submeter-me, em até seis meses, à cirurgia de remoção de catarata. Isso é o que lhe proporciona o fato de ser sex… sexagenário.

Já em casa, ainda sob efeito do exame, consigo ver com alguma nitidez, sobre a mesa de apoio de minha eterna parceira, as listas de material escolar de meus quatro netos. E os boletos para pagamento da mensalidade do colégio, prestes a vencer.

O ano mudou.

Mas eu é que devo mudar.

Mesmo porque tudo continua como antes.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.