Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças: E o amor que não retemos

Você perde a namorada. E por terem, de certo modo, desistido um do outro, as lembranças são a única coisa que restam (mesmo em níveis distintos de latência). Ela se vai e te apaga. Deleta-te não apenas nas fotos do Facebook, mas da sua vida. Tomando como base esse fluxo, foi que Michel Gondry também escreveu, certamente até o momento, aquela que pode ser considerada sua obra-prima baseada no fracasso das relações amorosas e no processo de ascendência e desgaste daquilo o que entendemos que é o amor. Disso, ele criou seu distinto Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004).

Após uma dolorosa separação, Clementine (Kate Winslet) inicia um procedimento para apagar da sua mente as memórias do seu, então, namorado Joel (Jim Carrey). Mas quando ele descobre a decisão extrema tomada pela ex-namorada para esquecer o relacionamento, decide realizar o mesmo procedimento e lentamente começa a esquecer a mulher que amava. No meio do processo, no entanto, ambos percebem onde as coisas começaram a dar errado e tentarão descobrir se algo ainda restou do laço criado pelo dois.

Livremente inspirado nas ideias que apenas a imaginação em função do cinema podem gerar, o filme comunga conceito e forma num equilíbrio bastante exato. Esse equilíbrio vem do fato de Gondry não exceder os limites que a cinematografia se vale. Em seu prólogo de 17 minutos, o longa nos dá uma perspectiva iminentemente naturalista.

Joel mata trabalho e casuisticamente encontra Clementine numa estação de metrô em Mauntauk. Uma elipse encerra a abertura da obra e a partir desse ponto o psicologismo se mistura com os traços do cinema fantástico ou surrealista.

É claro que “Brilho Eterno” tem gênero. É drama, romance e comédia. Mas as doses homeopáticas com que Gondry, Charlie Kaufman e Pierre Bismuth escreveram o roteiro dotam a estória de um delicioso comedimento de um trabalho que não se excede. Exceto naquilo o que ele tem de mais potente. Falamos do elenco. E aqui, Carrey é instigado a se conter. Diminui o riso e nos apresenta, sem dúvida, uma das suas mais polidas performances no cinema.

Impressionante é notarmos como o ator estimulado a se colocar numa outra esfera de atuação. Em um campo que vai além dos rótulos numa afirmação de que o cinema é também o lugar da quebra do nosso lugar viciado enquanto espectadores. É o olhar da expansão interpretação em termos de dramaturgia. E também da inserção de narrativas que trabalham em cima de uma imensa liberdade criativa e imaginativa na intenção inconsciente (ou não) de nos fazer refletir sobre as questões concretas das nossas vidas.

Uma dessas questões é o amor. E por ser um sentimento tão complexo, Gondry decide explorá-lo no filme de um modo subjetivado. Dentro do seu universo, a abordagem incialmente naturalista da estória vai dando espaço a uma proposta onírica e ancorada naquilo o que sonhos evocam. Daí, a direção de arte trazer uma textura surrealista que vemos no trabalho.

Cenários são criados para reforçar essa ideia da ilusão que nos vêm quando sonhamos. Mas tudo feito organicamente. Desde os dispositivos que os técnicos da Lacuna Inc. utilizam no processo de “apagamento” da memória, aos cenários que ultrapassam a função cênica e se tornam parte efetiva para a significação da narrativa ali desenvolvida.

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Cenários são criados para reforçar essa ideia da ilusão que nos vêm quando sonhamos. Carrey se reduz a polegadas e entra debaixo de uma mesa.

E apesar de ser um trabalho que leva a marca positiva do cinema de autor, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças aposta num olhar generoso, mas nem por isso descomplexo ou simplista para o que é a jornada de um relacionamento. As personagens se ferem, se perdem e se auto descobrem, mas tiram o melhor desse processo. Por isso ele é um filme que olha positivamente para a questão. Esses caracteres podem sempre recomeçar. Ainda que não tenham a certeza se será diferente o novo trilhar. E uma das afirmativas que Gondry nos deixa é em cima da ideia de que sempre podemos reiniciar. Sempre.

FICHA TÉCNICA
Título Original: Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
Gênero: Drama, Ficção Científica, Romance
Tempo de Duração: 110 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 2004      
Direção: Michel Gondry

 

 

 

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.