De leis, salsichas e indulgentes conivências. Ou de como fazer leis para que não venham a ser aplicadas, por simples descuido.
Paulo Elpídio de Menezes Neto
Cientista Político
“Le pouvoir gouverne toujours comme
les gouvernés gouverneraient s’ils avaient le pouvoir”.
Machiavel, “Oeuvres Complètes”,
Éditions de La Pléiade, Gallimard, Paris, pag. XIV
Linguistas insuspeitos atribuem a origem do termo “advogado” à expressão latina “ad vocatus”, “chamado para”. Essa convocação, apelo consequente, envolve a interveniência de um patrono, defensor ou intercessor de causas ou interesses postos em litígio. Com o passar do tempo, essa árdua função foi abandonando as artes exclusivas da retórica, e passou da fala eloquente dos oradores, do “rhêtor”, orador grego, à interpretação das leis e aos graves procedimentos das práticas processuais. Não é que os advogados tenham sido dispensados de suas prédicas das “artem rhetoricam”, em empenho de defesa de teorias, doutrinas e normas. Ao contrário, até; a estas incontestáveis virtudes associaram-se as habilidades delicadas de exegetas para o entendimento das intenções ocultadas pelas palavras e os engenhos da retórica. Advogados exerceram o “jus postulandi” sem remuneração, até que lhes foram conferidos tributos em bens ou espécie, em honra (“honor”) que lhes era conferida pelo exercício de sua profissão, os “honorarium”, posto que ninguém empenha o seu talento e o fruto de conhecimentos longamente ordenados e recolhidos por inclinação simples de pura benemerência…
Parecerá estranho aos que venham a ler estas considerações imponderáveis e desprovidas de ciência que um leigo, a quem foram de pouca valia os esforços dos seus mestres abnegados para incutir-lhe algumas luzes jurídicas, possa ter preocupações que só aos homens de Saber imputável seria dado por direito. Dou-lhes razão. Tenho comigo, entretanto, argumentos que invoco em defesa de meu atrevimento.
Das chuteiras patrióticas às prédicas jurídicas e à interpretação da Norma
De médico e louco, todos nós temos um pouco. De advogado e jurista, temos, nós brasileiros, muito ou quase tudo para encarar uma animada controvérsia pelas redes sociais ou no entorno singular de uma roda de chope. Não se viu quantas inclinações jurídicas brotaram nestes últimos tempos? Os brasileiros trocaram a paixão do futebol pelo trato da norma legal. O governo, por sua vez, cansado de governar passou a ocupar-se da rotina dos interrogatórios policiais e dos trâmites judiciários para aliviar-se da maçada das coisas do Estado. Não foram poucos os atraídos pelas questões processuais e que se deixaram seduzir pelas complexas razões de mérito levadas às mais elevadas e conspícuas instâncias recursais. Não somos mais aquela doce pátria em chuteiras, transformamo-nos em uma nação togada, agitada por ímpetos dialéticos, dominada pelos contraditórios cotidianos do entendimento jurídico. Há até quem repita, com certa afetação erudita citações em latim, como se estivesse em audiência pública, e contraponha argumentos definitivos ao derradeiro parecer acusatório e a decisões emanadas das excelsas Cortes judicantes.
Pois bem, essa agitação cidadã, por vezes dominada por altercações inusitadas, fez-me lembrar que, afinal de contas, a advocacia gira em torno de leis e de procedimentos cartoriais, é da sua índole. E que, embora não produza, de hábito, prosa literariamente elegante, faz de si o que pode para assegurar o entendimento das leis e a sua patriótica destinação. Ainda bem que não lhe coube a feitura das leis: o conde Otto von Bismarck suspeitava que a usinagem das regras legais segue procedimentos insuspeitados, no mais das vezes parecido com a fabricação das salsichas: “é melhor não ver como elas são feitas”.
A usinagem das leis e a sua eficácia aos olhos dos cidadãos
O fazer leis e aplicá-las são mistérios que escapam a nossa vã filosofia. O Estado expandiu as suas funções e ilimitadas competências, cresceu no tamanho do seu território geográfico e sofisticou os instrumentos do poder e de dominação “legal”, a tal ponto que os habitantes de um espaço “nacional” tornaram-se, aos poucos, no decorrer de lenta evolução, a “sociedade”, e esta, conquistada pela força do Leviatã, acabaria por confundir-se com o Estado. E de tudo isso resultaria que os cidadãos prestantes não percebessem se ao Estado (protetor, dominador, provedor…) justificaria a sociedade ou se esta legitimaria o Estado. Antes, eram as hordas, as tribos, os exércitos, os missionários da fé, litigando em defesa própria ou pela apropriação das coisas alheias, fixadas na figura indesejável do “outro”. Uns pela salvação dos bens terrenos, outros mais pela redenção da alma dos pecadores…
As ditaduras reduzem o “custo” jurídico do exercício do governo
Bem que nas ditaduras, naquelas fundadas pelas oligarquias das elites, quanto nas que provêm das explosões populares, enquadradas em ideologias vaso-comunicantes, a fonte das leis e o magistério togado de sua aplicação aparecem no âmbito do Estado. O governo (o poder executivo encarnando todas as fontes do poder político), faz as leis, aplica-as, julga as situações advindas de sua eficácia, condena e premia, no controle inconteste da máquina da coerção legal, que busca auto legitimar-se. Montesquieu, Weber, Hobbes, Maquiavel, Tocqueville e, antes deles, Aristóteles, Aquino, entre muitos outros, tentaram entender e, a seu modo, explicar, como os homens usam e se servem do poder: e o que parece mais atraente – o que fazem os humanos para justificar os seus anseios de poder e influência e para torná-los justos aos olhos de quem a ele se submete por inevitável injunção exercida pelo Leviatã.
O espírito das leis à brasileira
Por mais paradoxal que pareça aos desatentos observadores das artes de governar, aceita-se com naturalidade a preocupação dos governos de exceção de cercar-se, para o pleno exercício de seu poder instituído pela força ou pela manipulação de hesitações sociais, de um aparato legal, construído juridicamente. A Revolução Soviética, rompida a estrutura do Estado czarista, cuidou de afinar instrumentos legais que justificassem juridicamente a nova organização política que se sobrepunha à que a antecedeu. Aos novos detentores do poder parecia que as razões sociais, includentes e libertadores que fossem, careciam da roupagem formal da arquitetura jurídica, sem a qual as ditaduras assemelham-se a ditaduras… Hitler tratou de dar configuração legal ao golpe que esvaziou Hindenburg e restaurou longevas tradições guerreiras – mas forrou o ato de força da necessária instrumentação que somente as lei podem aviar.
No Brasil, criamos, com a nossa inventividade tropical, modelos particulares que, embora não fossem de todo originais, assumiram formas ”instituidoras” das reformas do Estado e dos aparelhos do governo. Em todos os casos, movidos pelo desejo de “legalizar” as mudanças impostas pela força instituidora: em alguns, dominados pelo sentido de uma certa hipocrisia cidadã, evocavam a necessidade da “legitimação” de nova ordenação.
As ditaduras não sobrevivem sem constituições ou leis, é da sua índole produzí-las
Foi assim com o nascimento da República, proclamada a desoras, em frente a um quartel sonolento, por um marechal equestre, que logo correria atrás de uma Constituição, para que não julgassem mal aquele rompante republicano. E nada parecera fora de propósito, já que se pretendia implantar a República e repúblicas funcionam, no mais das vezes, com constituições, pelo menos é que se espera de uma verdadeira vocação republicana…
Getúlio não deixaria por menos, patrocinou duas Constituições (1934, 1937) e instaurou o uso metódico do Decretos-leis, com os quais moldou os contornos do novo poder no Estado Novo (aquele “estado a que chegamos”, como diria Apporely, o Barão de Itararé…).
Os governos militares de 1964, conceberam, com a militância especializada de ilustres juristas, elos instituidores de uma nova ordem, democrática por definir-se anticomunista, de cuja ideologia propunha-se salvar os brasileiros). O Ato Institucional-1 ( de 17 atos aviados nos cinco primeiros anos) abriu uma alongada temporada de legalização de normas extra-constitucionais. Atos Complementares (eram “complementares” aos Atos Institucionais e instrumentos jurídicos auxiliares dos decreto-leis) foram 104, baixados ao longo de doze anos (1965/1977). Uma Constituição em 1967, à qual foram incorporados, ulteriormente (1969), dispositivos de exceção transpostos do AI-1 e A-5, principalmente. Dessas novidades, herdamos, a partir de 1988, com a Constituição-cidadã e apesar dela (considerada, hoje, excessivamente cidadã e por demais onerosa…), as “Emendas Provisórias”, arremedo “democratizado” para instrumentos legais suscetíveis de fazer face à preguiça ancestral das práticas parlamentares…
Recobradas as franquias democráticas, continuamos a legislar incansavelmente, sobre tudo, a grosso e a retalho. Graças a esse denodado esforço, criamos invejável mercado de trabalho, em expansão constante, para os que porfiam em favor da defesa dos direitos individuais e coletivos (até mesmo os empresariais).
Somos um país com vocação para as leis, pelo menos em aviá-las, dar-lhes forma e fundo, conquanto não dispensemos atenção suficiente (não se pode fazer tudo) ao seu conteúdo e sua desejável aplicabilidade aos fins a que se destinam.
Para um povo amante das leis e das instituições, como somos nós, basta que as normas sejam produzidas. “Está na lei”. Uma lei escrita justifica-se por si mesma. O povo conhece bem esses meandros e até já se habituou à cultura de “leis que pegam e leis que não pegam”; é da nossa índole, da nossa infinita capacidade de tolerância… Ao contrário de Otto Bismarck, os brasileiros têm profunda curiosidade por descobrir como as leis são feitas… Mas não os preocupa, como elas são aplicadas ou se deixam de sê-lo, em nome de razões superiores do Estado e das circunstâncias que tudo justificam…
As “leis moles” e as “leis duras, segundo Francisco Heráclio do Rego, constitucionalista esquecido pelos homens de ciência
Por fim, valha a evocação de um observador atento, engajado, a seu modo e segundo seu entendimento, na práxis da política brasileira. Refiro admiração que cultivo por um brasileiro que não teve reconhecimento de suas potencialidades em vida, nem depois da morte. Uma vocação legítima para a arte da exegese das leis e para os desafios candentes da ciência política: o coronel Chico Heráclio, Francisco Heráclio do Rego, chefe político de Limoeiro, em terras pernambucanas, cuja veia maquiaveliana explica, nos quadros do poder local, o viés voluntarioso dos arquétipos do Estado.
Ao avaliar a força das leis e dos homens que delas fazem uso, concluiu amparado em sua experiência: “Há duas espécies de leis, no Brasil, as ‘leis duras” e as ‘leis moles’; as ‘moles’ a gente passa por cima, as ‘duras’ a gente passa por baixo”.