Boyhood: E vida como exercício de autoconsciência

Doze anos. Esse é o tempo que o cinema pode demandar para sua realização. Esquecendo-se da sua escala industrial ou da sua vertente mercadológica, o filme é também um projeto de vida. Mas não tomemos a ideia num sentido carregado. Imaginemos uma estória filmada ao longo desse período por algumas semanas de cada semestre? Bom, foi isso o que Richard Linklater fez de 2002 a 2014 ao contar parte da infância e juventude de uma personagem e sua família. Assim se deu o seu exitoso Boyhood (2014).

Em tese, o longa esquadrinha os anos de Mason Jr. (Ellar Coltrane) da primeira infância ao seu ingresso na faculdade. E junto disso, também as mudanças pelas quais seu núcleo familiar vai passando com o amadurecimento da sua irmã mais velha, Samantha (Loreli Linklater), a resiliência de sua mãe (Patricia Arquete) e o pai biológico (Ethan Hawke) que sempre busca os acompanhar. Dada essa estrutura, uma questão aparece: que filme temos diante de um projeto como esse?

Muitos foram os que o comparam à pentalogia de Francois Truffaut sobre a vida da personagem Antoine Doinel de 1956 (Os Incompreendidos) a 1979 (O amor em fuga). Mas Boyhood é outra coisa. Aqui, a ideia é a de se colocar o cinema como processo iminentemente temporal e que segue a cronologia como uma experiência indissociável do trabalho artístico. O tempo da obra rompe o limite do estúdio e passa a ser o tempo da vida.

Talvez por isso o primeiro plano do longa seja o azul do céu com as nuvens compondo o que seria uma tomada subjetiva do pequeno Mason a contemplar o tempo que igualmente o contempla de volta. Essa marcação temporal é, inevitavelmente, o traço de condução da obra. Daí, chegamos na forma. E a montagem se agiganta ao longo de todo o trabalho como uma extensão natural do “cronos” que a cinematografia sempre incorporou.

E o que Linklater decide fazer é simplificar o uso da linguagem por meio de tudo o que ela tem de mais natural. Ele trabalha a transição dos anos através de elipses definidas pelo corte entre as cenas. E o mais impressionante é o fato de sequer notarmos isso. É quando nos damos cona do quão fluido seu filme é. A realização abre mão de convenções como as cartelas e legendas pressupondo a não subestimação da veia interpretativa do espectador ao passo em que reforça o tom naturalista da estória que segue. O tempo avança.

Nisso, vemos Mason e todos os demais personagens se transformando diante nossos olhos. De modo absoluto, o que temos são cerca de 12 capítulos cada qual correspondente a um ano da vida dessas pessoas na narrativa. E a cada nova transição, lemos um novo período que se esquadrinha através de um roteiro tecido a conceitos sobre a indivisibilidade da nossa condição humana e a ação do viver que apesar de toda a adversidade, se tece para frente.

E já que o caminhar do homem é adiante, Boyhood segue o traço do filme iminentemente narrativo. Clássico, naquilo o que ele tem de básico: um roteiro escrito sobre fatos e ações da cada caractere da estória. Mas também de singular: na consistência do cinema como trabalho mas que existe primariamente enquanto ponte para a arte e a convivência e fortalecimento dos laços entre nós, enquanto pessoas.

Aqui, cabe dizer dos contratos dos atores com a direção, claro. Mas também da disposição de ambas essas partes em viverem uma experiência de partilha criativa para a consolidação de um filme. E não foram poucos os abraços, vivências compartilhadas e laços criados entre toda a equipe na produção. Porque o longa poderia ter sido feito em 2 semanas (Josh Weddon fez “Muito Barulho por Nada” nesse tempo) ou levado 12 anos, como nosso longa se deu.

O que fica de mais impressionante na afirmação sobre Boyhood certamente é a realocação da cinematografia como uma nova proposição do nosso real. Sim, estamos discutindo um filme. Mas e se obra de arte for algo mais? Então, seria isso. Seria o dado de que nossos olhos não contemplam um produto industrial, ou destituído de “aura” como pregariam os apocalípticos dos anos 1950.

Porque para cada mente que o cinema abre novas veredas de interpretação e percepção da vida, a arte se replica num movimento sublime de autoconsciência e da nossa própria forma de olharmos para o mundo. Ou seja, por meio de ideias. Assim com as que ecoam nas falas de todos esses personagens e de toda a carreira de Linklater e sua equipe.

FICHA TÉCNICA

Título Original: Boyhood

Gênero: Thriller, Drama

Tempo de duração: 156 minutos

Ano de lançamento (EUA): 2014

Direção: Richard Linklater

 

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

Mais do autor

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.