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Reflexões a partir de processo cognitivo pessoal

Nascemos como uma folha em branco, mesmo que se queira admitir que a ancestralidade genética e as circunstâncias da gestação do ser humano possam influir na sua formação inicial de vida extrauterina.  
Agora, do alto dos meus 73 anos, posso ver com clareza o pouco que sabia na adolescência (e achava que já sabia tudo) e o muito que ainda estava por aprender quando cheguei em Fortaleza em março de 1970, faltando um mês para completar 20 anos, para cursar a tradicional Faculdade de Direito da UFC, com os seus professores catedráticos de elevados níveis de informações gerais e conhecimentos jurídicos que eram infinitamente superiores aos meus.  

Sou grato por ter aportado num ambiente culturalmente rico, que reunia um passado recente de efervescência política e cultural (as paredes do anfiteatro da Faculdade ainda estavam pichadas com frases contra as prisões que haviam sido feitas recentemente) onde se observava a coexistência de correntes de pensamentos e comportamentos diversos, agora severamente vigiados, após o AI5 do governo de exceção.

Vivíamos o início do chamado “milagre brasileiro” da era militar mais recalcitrante da ditadura sob a presidência do Gal. Emílio Garrastazu Medici, e o povo, raciocinando pelo bolso e sem compreender a farsa, aplaudia o ditador nos estádios de futebol, quando este usava demagogicamente um rádio de pilha para assistir aos jogos e receber tais aplausos tentando demonstrar apoio popular à causa ditatorial.  

O ambiente cultural da Faculdade de Direito era rico; os proibidos assuntos políticos se davam aos sussurros dos militantes que vinham dos movimentos contestatórios do final dos anos sessenta e estavam sob a mira dos agentes policiais infiltrados. A cena cultural aproveitava os espaços mais condescendentes para emitir suas mensagens cifradas e metafóricas.

Estudante pobre, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, vindo de um outro estado (mas bem acolhido, como sempre ocorre no Ceará), e vindo do interior, eu era o típico personagem da canção do Belchior (aluno da Faculdade de Medicina) que ali aparecia para compartilhar as músicas com seu parceiro piauiense Jorge Melo, aluno do curso de direito, além de Gonzaga Vasconcelos, apresentador do programa de TV “Porque hoje é sábado”.  

Ali pude fazer a minha opção como futuro advogado ao ter contato com os que me aceitavam sem perguntar se eu tinha carro; se frequentava ambientes festivos e caros; onde morava; ou de quem eu era filho.  
Fortaleza era ainda uma pequena capital com 800.000 habitantes (hoje a grande Fortaleza conta 3.6 milhões). 

Para o pessoal da esquerda daquela época, quando mais pobre e disposto a andar na contramão, melhor. Hoje a esquerda se institucionalizou por demasia e absorveu as benesses que a política convencional democrático-burguesa pode proporcionar, e está contaminada por um sentimento pequeno burguês acomodado e perigosamente pernicioso.

Foi assim que passei a advogar causas populares, e logo, logo, estava ajudando a fundar o CDPDH – Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos, da Arquidiocese de Fortaleza, cujo Arcebispo era o Cardeal Aloisio Lorscheider, que quase foi o primeiro Papa oriundo da América Latina (mesmo com   seu nome alemão, as suas ideias da Teologia da Libertação, corrente à qual era ligado como formulador doutrinário, o impediu de sê-lo).  

Consta que o Papa João Paulo I (hoje beatificado), eleito, e que viria a morrer 33 dias depois, votou nele e com ele iria seguir por caminhos que hoje são trilhados pelo Papa Francisco.  

Como militante político no campo jurídico pude sentir quão adversas são as tarefas do advogado que luta pelos direitos dos despossuídos numa ordem jurídica na qual o direito de propriedade está acima de qualquer hipoteca social;  
– dos que ousaram defender os que afrontaram os rigores e perseguições do regime de exceção;  
– de advogar a causa dos sindicatos de trabalhadores nas convenções salariais com o patronato; e daí por diante.  

Posicionei-me contra o bipartidarismo que fora consentido pela ditadura para dar um ar de legalidade ao arbítrio e me juntei a partidos clandestinos que passaram a se abrigar na institucionalidade consentida, e logo após ajudando a fundar o PT – Partido dos Trabalhadores, que àquela época (1978) apenas se anunciava como um partido de trabalhadores, e sem patrões.  

Estive com Lula em outubro de 1978, em sua primeira visita a Fortaleza, quando como Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, operário mutilado em trabalho e cometendo os erros de português próprios a quem não pôde ter formação educacional da elite, e sua luta e condições me encantaram esperançoso.  
Julguei-o, ingenuamente, apressadamente, um revolucionário, confundindo o operário com a classe operária. Lula é um advogado de trabalhadores, que precisa que eles continuem trabalhadores, para em cima disso construir o seu poder político. Já eu desejo a superação da condição de trabalhadores dos operários, e torná-los livres de tal exploração. São posições inconciliáveis.  

Mas ali fiquei impressionado com a sagacidade e pretensão daquele que então se tornara um inquestionável companheiro, que me convenceu a seguir na construção do seu partido. Tudo parecia perfeito no meu senho ingênuo de cristão novo.  

Na esteira de tais acontecimento ganhamos força, e em 1985 elegemos em Fortaleza a primeira Prefeita de uma capital no Brasil (a quinta do país), e se tratava de uma mulher revolucionária, então Deputada Estadual forjada nas lutas da qual eu participara, e seria a primeira mulher a dirigir uma capital, de orientação marxista, e Fortaleza se encheu de bandeiras vermelhas e de esperança.  

Mas a realidade costuma ser bem mais opaca do que o verde da esperança, e antes mesmo da meia-noite a carruagem virou abóbora.
Foi a partir da Administração Popular que pude observar a incompatibilidade entre um projeto revolucionário de sociedade, no qual não haja exploradores e explorados, e a administração de um aparelho de Estado burguês.  

Comemos o pão que o diabo amassou (e sem a autonomia financeira que viria com a Constituição de 1988 a vigorar em 1989, quando já havíamos saído), e fomos perseguidos pela direita fascista, pelo centro socialdemocrata, pelo PC do B e posteriormente pelo PT, que terminou por nos expulsar.  

A natureza do aparelho de Estado formatado pela ordem republicana burguesa corresponde ao interesse do capital; a institucionalidade burguesa morde e assopra, ou seja, ao mesmo tempo em que cobra impostos de uma população exaurida economicamente e a usa para financiar a máquina administrativa institucional que dá sustentação à ordem segregacionista do capital e à manutenção do seu aparelho policial civil e militar, além da execução de obras de infraestrutura para o fluxo de desenvolvimento econômico do capital, anuncia-se como promotora do atendimento das demandas sociais.

A opressão estatal burguesa é gritantemente majoritária em relação ao atendimento das demandas sociais por ele supridas.  

Foi assim que comecei a compreender a inadequação de revolucionários cumprindo o equivocado mister (sob tal perspectiva) de administrar a falência crescente do capitalismo e, consequentemente, do seu aparelho jurídico-constitucional de sustentação.  

Ainda ontem, conversando com pessoas importantes na cena cultural brasileira, meus amigos, que têm uma clara satisfação com o que consideram ser uma inclinação civilizatória de um governo socialdemocrata como é o do Lula, argumentei sobre quão perniciosa pode ser uma postura paliativa no atual estágio de decomposição social e ecológica capitalista num mundo completamente tomado por tal modo de relação social.  

Argui que o aplauso mundial capitalista ao Lula, em contraposto ao projeto fascista que ganha adeptos em cima do fracasso e desgaste de administrações “bem-intencionadas” de esquerda, corresponde a uma tentativa pequeno-burguesa de humanização de uma relação social desumana na sua origem, e que no seu estágio de saturação irreversível, está nos levando para o abismo.    

Disse que o medo do fascismo não pode servir de justificativa para comportamentos paliativos, e que necessitamos com urgência de uma discussão séria sobre o sustento da humanidade que vem empobrecendo e sendo ameaçada por guerras e aquecimento do clima por conta da insensatez capitalista, que nos induz a agirmos como o avestruz, que encosta a cabeça na terra quando sente medo.    

Meus diletos contendores afirmavam que mesmo sob o capitalismo muita coisa boa pode ser feita, e me deram alguns exemplos. Disse-lhes que sim, sempre se pode fazer algo positivo diante do caos predominante, mas o mais importante é superar o próprio caos, sob pena de cuidarmos da unha cravada quando um câncer se metastiza.

O dinheiro, que é a manifestação numérica da forma valor, ambas mercadorias e abstrações inventadas pela mente humana para escravizar, é objeto da idolatria do mundo dito moderno, mas que, paradoxalmente, é o grande desconhecido de sua essência destrutiva, mesmo pelos que se pretendem ser pertencentes a uma elite cultural bem-informada e que se pretende detentora do saber genérico.

É perfeita, como imagem explicativa, a metáfora usada por Marx em chamar de fetichista o mundo da mercadoria, numa analogia aos totens dos aborígenes australianos, que os construíam e passavam a matar os membros mais belos(as) da comunidade em sacrifício para o atendimento por estes mesmo totens de seus interesses climáticos, de contenção de pestes e outras desventuras.  

Assim é o capitalismo no atual estágio, aceita-se o ruim, por medo de péssimo, mas isto somente vai perdurar até o momento em que a necessidade objetiva nos impuser a superação do atual modo de produção social e sua organização jurídico constitucional.  

Mas somente se ainda der tempo..

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