QUEM APERTA A BOMBA DO COMBUSTÍVEL? por Rafael Silva

Outro dia um aluno me perguntou como eu via a interferência do governo sobre o preço do combustível. A vida me ensinou que para responder uma pergunta maliciosa, você precisa de outra, mais maliciosa ainda. Daquelas que aprofunde o conflito no limite de produzir uma nova tese.

Estou convencido que nossa tarefa consiste em aproveitar a crise de forma serena, mas perspicaz. Por isso recorro a Boaventura quando diz que “não precisamos de uma globalização alternativa, mas de uma alternativa à globalização.” Se ele tiver razão: não precisamos de uma alternativa ao preço do combustível, mas de combustível alternativo.

Quero, assim, regressar à pergunta do aluno e buscar uma análise sociológica, atenta a duas áreas extremamente sensíveis a este contexto: economia e política, nas suas dimensões globais e nacionais. E em seguida estabelecer um diálogo: como você prefere o preço do combustível, alto ou baixo? Livre ou controlado? A obviedade da resposta esperada me obrigou a fazer algumas contextualizações.

Numa retrospectiva rápida do setor, se observamos a crise (política) do petróleo – década de 70 e seu aprofundamento décadas depois ( meados anos 90), financiada pelos Estados Unidos. Ninguém admite, mas isso resultou no aumento das reservas americanas. Para aprofundar esse tema é preciso observar o movimento geopolítico recente. O ouro negro – como é conhecido o petróleo -é o principal combustível do sistema mundial desde o Século XIX. No pós-guerra, a sua produção foi atrelada pela indexação do dólar, constituindo-se em uma moeda mundial. A contragosto dos EUA e da Rússia, os países produtores  fundaram a OPEP  para definir o preço e a quantidade produzida do barril, o que passou a ser comercializado no sistema financeiro mundial. Por hora, é importante saber que o preço e os estoques variaram, antes de você concluir essa leitura1. O preço é alterado por razões distintas, uma delas é a oferta e procura. A notícia que mais impactou o preço do petróleo foi a mudança lenta, mas gradual da matriz energética dos EUA para o gás de xisto. Essa decisão desequilibrou a curva da demanda2 e hoje o sistema mundial produz mais petróleo do que consome.

Mas isso, não deveria baixar os preços? Em tese sim, mas outras variáveis influenciam o preço mundial. A indexação ao dólar, estabilidade econômica, ação do governo ou tudo isso, ao mesmo tempo. Agora vamos ao contexto brasileiro.

Em meados do início desse século o Brasil investiu na ideia da autossuficiência de produção e refino do petróleo. Desde que avançou com tecnologias para explorar o pré-sal, uma enorme celeuma se amontou ao processo. Despertou profundos interesses, em especial dos americanos que, mesmo modificando sua matriz, sempre souberam a importância política e econômica em questão. Vamos afunilar o debate e chamar atenção para a composição do preço do combustível, pois existem pelo menos três camadas visíveis definidoras do preço: (I) custo de produção (II) impostos federais, e estaduais (III) participação do mercado – refinarias, distribuições e postos de combustíveis.

Se concentrarmos análise no custo, veremos que a partir de 2016, a PETROBRAS subutiliza sua capacidade técnica e terceiriza 30% do refino aos Estados Unidos. Num só tempo, afeta seu custo de produção, gerando capacidade ociosa e desequilibra a balança de pagamentos do país com os americanos, no caso uma piora de 20%. Mas o grande problema é o fato de tornar a Petrobras menos competitiva em relação as suas concorrentes estrangeiras (SHELL, CHEVRON E ESSO). Para sobreviver, a estratégia possível é a elevação dos preços ao consumidor.

Mas os impostos, não influenciam no preço? Sim, mas não é decisivo. Mesmo chegando próximo de 45%, é preciso gerar fundo para financiar políticas públicas. Depois, é importante atestar que imposto nunca foi problema. Os mercados mais sólidos (Alemanha, Reino Unido, Japão e Itália) praticam maiores taxas sobre os combustíveis do que o Brasil.3 Nos EUA e em Portugal, onde resido nesse momento, os impostos são menores, entretanto o preço final é bem maior que no Brasil, dada a apropriação da mais-valia. A explicação aqui é outra! Qual? O governo precisa interferir na composição do preço pela via dos impostos e/ou subsidiando parte dos custos. E, isso tem consequências diretas sobre o preço. Se o governo resolve agir pela via dos impostos pode simplesmente aumentar ou diminuir a tarifa (CIDE, COFINS, PASEP e PIS) no caso do governo federal, do ICMS – no caso dos estados. Contudo, quando o governo resolve subsidiar os preços, a ação ocorre na exploração e o no refino. Geralmente, essa é opção de governos com perfis mais estatizantes, como foi o caso do Brasil até 2015 e na Venezuela atualmente.

E a inflação? Pergunta o aluno incauto. Esse é meu próximo ponto! Vamos a ele. A motivação de fundo da ação do governo passa pela influência bi-direcionada na inflação. Bi-direcionada? Sim, quando a inflação influencia e sofre influência simultânea dos preços dos combustíveis. A literatura sobre inflação é muito farta, uma delas resume em pelo menos três tipos de inflação (I) Inflação de Demanda4 (II) de custo5 (III) inercial6. Aplicando a nossa análise, vimos que de 2003 a 2016, a inflação alternou-se entre demanda e custo. Nesses cenários, controla-se o preço mirando na inflação. Logo a participação do governo é agir diretamente no controle da inflação (ora subsidiando os custos da PETROBRAS, ora cortando impostos). Contudo, depois do golpe de 2016, abateu-se sobre o mercado brasileiro um profundo descredito, ambiente suscetível ao tipo de inflação inercial que age sobre o custo e sobre a demanda retraindo, psicologicamente, os agentes – ninguém produz e ninguém compra. Nesse ambiente, é inútil intervir nos custos e impostos, senão gerar credibilidade, inclusive respeitando a democracia. Coisa difícil de ser vista no Brasil recente.

A culpa é do golpe? Não só! Mas esse é o ponto! Sabendo do cenário inercial – atualmente – o governo resolveu não intervir sobre os preços, dada sua baixa utilidade. Ao invés de gerar estabilidade, pousou de liberal ao transferir para o mercado a regulação dos preços (leia-se Nova Iorque e Londres). O mais otimista – dos liberais sabe que o mercado monopolista7 não é regulado pela mão invisível, senão por um conjunto de regras orientadas pelo Estado. Não se trata de uma visão valorativa, mas de teses sustentadas por teóricos consagrados, como Marx e Keynes. Até Smith – o pai do liberalismo – denunciou a presença de carteis e monopólios de sua época. Atualmente, os liberais – Stiglitz e Sen, e o progressista – Samir Amir sustentam essa visão. No Brasil, as principais contribuições veem de Luiz Carlos Beluzo, Tânia Bacelar e Ladislaw Dowbor. Nesse sentido, qualquer análise conjuntural precisa respeitar a gelidez dos números, entretanto estar atenta ao calor da política, onde a vida acontece.

E – agora – já podemos responder quem aperta a bomba do combustível? Se considerarmos o tipo de inflação que pairava nos governos Lula/Dilma é possível admitir a intervenção sobre o preço da gasolina. Tecnicamente, esse cenário é outro e por isso exige outra postura. O caminho é muito mais difícil do que cortar aqui, aumentar ali, intervir acolá. Se você achar justo que sua vida seja conduzida a partir de decisões tomadas nas bolsas de Nova Iorque e Londres, então o caminho do mercado é aceitável. Apesar de ser um risco, é possível transferir a vida comum para o mercado. Entretanto, se quisermos adotar qualquer caminho contrário, então precisamos admitir não apenas a interferência, mas o controle total do governo sobre o monopólio dos combustíveis (na extração, refino, e no controle na distribuição e no comércio).

Por isso, é preciso determinar quem aperta a bomba, se o governo ou o grande irmão do norte.

Contudo, preciso dizer um pouco mais. Observando a profunda dependência de nossa sociedade aos combustíveis fósseis, materializada na paralisia que ameaça aeroportos, hospitais, serviços de água e energia, não posso reduzir minha resposta a intervenção circunstancial do governo. Para cumprir minha tarefa pedagógica necessito dizer que precisamos superar a dependência aos combustíveis fósseis e sua financerização. O primeiro passo é resgatar a democracia perdida. A crise da credibilidade que nos impõe uma trave, fazendo os mais inteligentes entre nós reduzir o debate à corrupção. Preciso de alguma forma dizer que não é a corrupção quem aperta a bomba do combustível, mas o mercado financeiro. São os estoques dos americanos, os interesses das bolsas de Nova Iorque e de Londres, enfim, o capitalismo globalizado.

Se os não-economistas, a classe trabalhadora, e o cidadão comum se apropriarem desse debate e a partir dele compreenderem que a transformação necessária precede a capacidade de intervenção do Estado, e da sua de intervir no governo, teremos cumprido nosso papel. Por isso não precisamos de uma alternativa ao aumento dos preços de combustível – mas sim de combustíveis alternativos.

1 A variação do preço do petróleo pode ser acompanhado no endereço a seguir: http://www.investir-petroleo.pt/artigo/preco-petroleo-evolucao-atual-grafico.html

2 Ver comportamento da curva da demanda do petróleo em: http://peakoilbarrel.com/iea-oil-market-report-december-2016/

3 Ver composição dos combustíveis nos principais países em: http://www.petrobras.com.br/pt/produtos-e-servicos/composicao-de-precos-de-venda-ao-consumidor/gasolina/

4 Inflação de Demanda: A inflação de custo ocorre quando o consumo aumenta de forma significante. Tem muita gente querendo comprar!

5 Inflação de Custo: A Inflação de custo é motivada pela elevação dos custos de produção motivadas muitas vezes por uma política continua de aumento de salários. Esse cenário retrocede a produção e, por consequência eleva os preços.

6 Inflação Inercial: O terceiro tipo de inflação é a mais perigosa. É conhecida como a inflação psicológica e se caracteriza por deixar todos os agentes econômicos retraídos

7 Tipo de mercado em que há apenas um ou dois concorrentes.

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