A quem interessa a qualidade dos serviços públicos?
Um pouco de história da administração pública, antes de falar dos dias atuais. Em 1532, a coroa portuguesa criou o regime das Capitanias Hereditárias, dividindo o Brasil em fatias com saída para o mar. O resultado foi fraco, mas a inércia foi quebrada. Poucos anos depois, em 1548, em busca de coordenação e controle efetivo, Portugal cria a figura do Governador Geral. E assim caminhou o Brasil colônia, por quase três séculos, ainda sem vida e agenda próprias, administrado à distância e com a influência mais direta da Igreja.
Até que Napoleão expulsa o Rei Dom João VI de Portugal e a corte se instala no Rio de Janeiro. Era 1808, e começa a haver vida burocrática, mas tudo com cores estrangeiras, ainda. Em 1822, o famoso Grito de Independência, às margens do Rio Ipiranga, de Dom Pedro I, instala os primeiros contornos da máquina pública realmente brasileira. Nas quase oito décadas de Império que se seguiram, de 1822 a 1898, numa economia primária e precária caracterizada pela mão de obra escrava (entre índios brasileiros e negros africanos e brasileiros – leia-se Gilberto Freyre para uma versão suavizada dessa história), uma burocracia brasileira se fazia nascer (Raymundo Faoro ressalta que o Estado nasceu antes da sociedade no Brasil).
“O serviço público era a vocação de todos”, dizia Joaquim Nabuco, numa economia atrasada e de trabalho escravo, quase limitada à agricultura e mineração, mínimo de comércio e manufatura. E as nomeações (então todas) livres eram definidas também por afinidades pessoais e sociais e em busca de apoio político. Mesmo assim, uma burocracia floresceu.
Getúlio Vargas, ditador nos anos 1930, com a criação do Dasp (departamento de administração do serviço público), em 1938, faz a primeira grande reforma do século XX e estabelece as bases fundamentais de uma burocracia formal e (que se queria) profissional com vistas à modernização real. O país e o seu serviço público se erguem sobre esta base.
Os militares que tomaram o poder em 1964 realizam, através do Decreto-Lei 200, a segunda reforma essencial, apontando para o mesmo rumo de Vargas (modernização, nacionalismo, desenvolvimentismo, profissionalização da burocracia).
A terceira grande reforma do século XX foi feita pelo então ministro Bresser-Pereira, em 1995, no primeiro mandato de FHC.
Sobre estas bases forma-se uma máquina pública de desafios monumentais. O Brasil tem dimensões gigantescas, a diversidade regional é colossal, a população é majoritariamente pobre, os problemas que os países desenvolvidos resolveram no século passado (reforma agrária, por exemplo), nós sequer os discutimos e enfrentamos, o grau de participação e de consciência política é perto de zero, a desigualdade é enorme e crescente, a cidadania ainda é uma conquista distante, fincada na linha do horizonte.
A Constituição de 1988 estabeleceu direitos e garantias, como a educação e saúde integrais e universais de qualidade e gratuitas, que os governantes não conseguem implantar e manter. Brasil, um país de todos, não passa, ainda e infelizmente, de uma marca publicitária.
O serviço público tem qualidade baixa, todos concordam. Mas ninguém mediu, ninguém monitora. Mais um falso consenso convenientemente criado. As comparações do serviço público brasileiro com o de outros países, regra geral, são manipulações, porque não se pode comparar bananas com laranjas. As realidades são diversas.
Nada pode ser feito para melhorar a qualidade. Estamos condenados a ter um serviço público de baixa qualidade. Outro consenso possivelmente falso, também convenientemente construído e mantido.
O servidor é ineficiente e sem compromisso, dizem e repetem à exaustão. Mais um consenso provavelmente falso e convenientemente construído.
Tudo aponta para consensos que objetivam desacreditar o serviço e o servidor e, principalmente, desmobilizar o cidadão, fazê-lo conformar-se e acomodar-se, desistir de propor, de cobrar, de fiscalizar.
Nos últimos meses foi aprovada a Lei de Teto de Gastos, que congela os valores reais de todos os gastos sociais por vinte anos. Isso mesmo, vinte longos anos. Engessar a educação, a saúde e outros gastos sociais num país como o Brasil por vinte anos é difícil de entender, impossível de explicar. Uma medida certamente radical. Beira o fanatismo. Foi votada a toque de caixa, sem debate, sem análises sérias e profundas, quase sem planejamento.
O serviço público enfrentará tempos difíceis e duros. O desafio que se coloca para os prefeitos, governadores e para os presidentes é dramático – o tempo vai mostrar quanto. Esse drama será cada vez maior. O mais provável é que a população sofra consequências profundamente negativas.
Um debate se impõe. No momento, o pior que pode acontecer é o silêncio, a omissão, a indiferença.