Os muitos usos da palavra democracia

“A desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas.”

Karl Marx

​Desde o início a palavra democracia corresponde a uma tentativa enganosa de horizontalização do poder social e político. Aprendemos, erroneamente, desde os bancos escolares, que na Grécia antiga democracia significava governo do povo (demo, povo + cracia, governo).

​Na verdade os demos eram os cidadãos athenienses que podiam participar das decisões políticas (de polis, de onde deriva tal palavra) daquela cidade-estado grega. Ficavam excluídos os escravos e outros membros de castas sociais menos classificadas na hierarquia grega, vez que não tinham o direito de tal participação.
​Passados mais de 3.000 anos o sistema de participação popular ganhou aperfeiçoamentos que continuam a dar suporte à verticalização do exercício do poder político consentâneo com formas escravistas de organizações sociais, nuns arremedos de representações populares que apenas legitimam as opressões neles contidas.

​A democracia moderna, como disse Anselm Jappe, é uma arapuca.

​A divisão política bicameral do parlamento, pretensamente representativa da vontade popular, existe desde as Monarquias constitucionais, há mais de 200 anos, como forma de existência de um poder moderador das funções executivas de governo, mas que convergem sempre num mesmo sentido de manutenção de uma ordem de relação social escravista na sua essência.

​As mudanças políticas podem existir, desde que sirvam ao capital, e o mais eloquente exemplo disso é o que ocorre com a China, com um governo forte, controlador, dito comunista, e uma economia capitalista escravista no mais alto grau da exploração dos trabalhadores chineses incorporados ao seu processo de industrialização urbana.

​É claro que os defensores da democracia liberal fazem sempre o contraponto de seus pressupostos políticos com as ditaduras absolutistas que são intolerantes à divisão do poder sob qualquer forma; mas isto não significa que devemos aceitar o ruim por medo do péssimo.

​A verdade é que sempre se criou a ideia de que não há forma possível de participação popular eficaz, e justamente por isso se aceita a democracia burguesa como uma bem intencionada tentativa de participação popular, e na pior das hipóteses como um mal menor.

​Ainda no final do século dezoito, e nos momentos que antecederam a primeira guerra mundial, a Inglaterra e seu império colonial experimentavam há muito um parlamento bicameral nos moldes da democracia burguesa atual. Lá a Rainha ou Rei reinam mas não governam.

Primeiro com a Câmara dos Lordes, que corresponde ao nosso Senado Federal, um modelo de representação elitista que incluía a nata da aristocracia, os bispos, e os juízes do alto escalão.

Segundo com a Câmara dos Comuns, que correspondia à nossa Câmara Federal, que era formada por representantes eleitos sob o mesmo figurino político eleitoral (sem que àquela época fosse facultado o voto feminino) dominado pelo poder econômico e uma legislação eleitoral que permitia a escolha dentro daquilo que já fora previamente escolhido.

Mais de 100 anos após, aqui no Brasil (e mundo afora) vige um modelo de representação parlamentar elitista. Temos o Centrão, que é um grupo parlamentar de mais de 300 deputados, que representa a unidade de interesses econômicos de setores do capital que convergem sempre no sentido da manutenção das regras de relações sociais sob a égide de quem os elegeu: o capital.

Como os políticos são majoritariamente paus mandados do capital (só raramente os grandes capitalistas se aventuram em atuar no parlamento, e mesmo assim, quando o fazem, são movidos por vaidade pessoal que logo se desfaz quando percebem que o verdadeiro poder está no seu capital e não naquela efêmera participação direta de esfera submissa de poder político ao dito cujo), o processo eleitoral é marcado por uma falsa soberania de vontade popular na escolha dos seus representantes, que são eleitos mediante o cabresto dos rincões mais profundos do interior do Brasil e do poder econômico.

Não é de se admirar, portanto, que o tal Centrão seja fisiológico e negocie apoio na base do toma lá dá cá, notadamente quando os governos (todos) se fragilizam diante do desgaste comum a um exercício de poder executivo incapaz de prover as demandas sociais a contento.

Quando um troglodita (que me perdoem os trogloditas dos primórdios) como Daniel Silveira, dizendo-se democrata, mas sendo apologista de assassinatos como o da Vereadora Marielle Franco e seu motorista, atuando como defensor das ditaduras absolutistas e pregador da volta do AI5 (período mais obscuro da ditadura militar de 1964-1985), se aventura a publicamente (mesmo sendo membro do parlamento) pregar o fechamento da casa legislativa a que pertence, o faz de modo oportunista, ávido por mais poder e sentindo a insatisfação popular, querendo afirmar que o oposto do que está posto é a ditadura, que entende ser democrática.

Não! O que está posto não é democracia (se quisermos dar à palavra um sentido de soberania popular de vontade) e nem a ditadura é mais democrática do que a democracia burguesa, criadora permanentemente dos Centrões da vida.

Para termos uma participação popular na qual cada um de nós sejamos concomitantemente responsáveis pelas nossas venturas e desventuras, sem transferência de responsabilidades para algum representante político, somente poderemos viabilizar tal exercício se transformarmos o nosso modo de produção social.

É o modo de produção social aquilo que define o caráter das sociedades.
Do mesmo modo que caridade muitas vezes é usada como modo de preservação de um modo social que é implicitamente injusto e alivia a consciência de uma culpa social implicitamente existente, como num chá da caridade de damas da alta sociedade, a defesa da democracia burguesa costuma ser uma justificativa para algo que se sabe de antemão ineficaz, e o falso antídoto à ditadura, como se só existissem apenas os dois modelos.

Os trabalhadores de baixa renda vivem num mundo que lhes é opressor, e evidentemente sentem a opressão e o sofrimento a que estão submetidos; mas não acreditam num mundo diferente, ou acham que tudo pode melhorar dentro da ordem existente, que consideram imutável.

Entendem, equivocadamente, que a eles cabe apenas a tentativa de furar o bloqueio que lhes impede de uma ascensão social, como aconteceu com aquele conhecido que hoje se tornou um próspero comerciante de bairro ou, ainda, acertar sozinho na loteria esportiva.

Ao invés de negarem o móvel da opressão própria ao capital e seus donos e representantes, reafirmam-na cotidianamente. Buscam na causa do mal a cura do mal, tal qual um toxicômano.

Os trabalhadores têm nas suas condições de trabalhadores, sempre elogiados pelo capital e pela ordem política e social que lhe é inerente (até Hitler assim procedeu), a satisfação de ainda terem o direito de um emprego (daí a busca frenética pelos empregos cada vez mais escassos), sem entenderem que somente a própria superação de suas condições de trabalhadores assalariados pelo capital é aquilo que poderá promover o início da justiça social necessária.

Assim, os que querem a preservação dos seus privilégios, ainda que estejam cada vez mais ameaçados pela própria debacle capitalista causada pela contradição dos seus próprios fundamentos funcionais, querem a continuidade da democracia burguesa; os que deveriam rejeitá-la (os trabalhadores assalariados de baixa renda, a grande maioria) não sabem a forma de fazê-lo.

Nesta simbiose entre a esperteza dos que sabem gerir politicamente os seus interesses capitalistas e a ignorância sobre a condução revolucionária dos que gostariam de superar os seus sofrimentos, mas não sabem fazê-lo, permanece a falsa dicotomia entre ditadura totalitária e democracia burguesa, como se a força das armas e a solenidade pomposa do poder vertical concentrado e autoritário fosse a antítese da busca de humanização do capital via processo democrático burguês republicano.

A ditadura burguesa e a democracia burguesa são espécies de um mesmo gênero: a mediação social capitalista.

Não! A antítese ao capital é a sua extinção como modo de relação social, e não a sua impossível humanização.

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