Obrigado, Pelé!

Há uma discussão entre a intelectualidade sobre a obrigação que os grandes ídolos têm de se posicionar sobre questões de suas vidas pessoais e políticas que têm repercussão geral e que, portanto, dizem respeito ao interesse da sociedade como um todo.

​Entendo que eles devem se posicionar, pois a sociedade que os idolatra tem o direito de saber o que eles pensam sobre temas que lhe são pertinentes; eles devem interagir com quem os sustentam.

Se se omitem significa que têm medo da eventual repercussão capaz de atingir as suas imagens de heróis, e esta é uma postura social e pessoal que desmerece os seus feitos; se se posicionam geram aplausos para os que convergem com as opiniões e sofrem com as críticas dos que deles discordam, por vezes com punições muito demasiado severas. Mas é o preço da fama.

​Nesse campo Pelé chutou algumas bolas foras e outras dignas de um inacreditável futebol clube, mas não é o momento de relembrá-las, mas atenuá-las, até porque o mérito de Pelé transcende os seus deslizes pessoais e políticos graças à grandeza do que representa para o Brasil.

​Pelé colocou o Brasil no mapa mundial.
​Antes de Pelé era comum no exterior se confundir a capital do Brasil de então, o Rio de Janeiro, com Buenos Aires;
– Di Stefano era bem mais conhecido do que Leônidas da Silva, o diamante negro e inventor da bicicleta no futebol;
– Juan Peron e sua Eva Peron eram bem mais conhecidos do que Getúlio Vargas e Dona Santinha, esposa do General Presidente Eurico Gaspar Dutra;
– o samba era sambinha (sob protestos de Ari Barroso), e perdia em prestígio para o tango de Carlos Gardel, artista franco-portenho de fama internacional;
– O Guarani, um épico da música clássica de Carlos Gomes, causava surpresa com a qualidade da obra oriunda de um brasileiro, ccomo se fosse algo exótico, mas carimbava a ideia de menosprezo mundial de então pelos indígenas (que ainda perdura, infelizmente, pela elite empedernida, presunçosa e ignara);
– Carmem Miranda, a grande artista luso-brasileira precisava colocar bananas na cabeça para realçar o exotismo de seu talento musical e mise-an-scene perante o público dos Estados Unidos, e não raro, precisava cantar em castelhano como se fosse Argentina;
– e o nosso café, de qualidade internacional, era o nosso único embaixador.

Pelé mudou tudo. Quando alguém desembarcava em qualquer lugar do mundo e dizia que era brasileiro era imediatamente identificado como alguém da terra do Pelé.
Pelé foi e ainda é o brasileiro mais reverenciado no exterior, e passados quase cinquenta anos depois de ter pendurado as chuteiras os seus recordes permanecem inatingidos.

Ninguém tem três copas do mundo de futebol como campeão;
ou fez 1.283 gols em 1.363 partidas oficiais, e obteve em tantos jogos a incrível média de 0,90 gol por jogo (e não era centroavante);
ninguém parou uma guerra entre países africanos, só porque o Santos de Pelé ia jogar em um daqueles países que se engalfinhava numa luta sangrenta;
ninguém viu um juiz de futebol ser expulso de uma partida por ter expulsado Pelé e como forma de se evitar uma revolta entre os que assistiam à partida;
ninguém foi campeão do mundo aos 17 anos de idade e sendo protagonista da copa de 1958 com 5 gols na semifinal (3) e final (2);
ninguém, conquistou tantos títulos por um único clube como Pelé na Santos;
ninguém foi tão reverenciado por dirigentes democratas (como Juscelino Kubitschek e Robert Kennedy) e ditadores oportunistas (como Garrastazu Medici).
Ufa!!! Teria outros recordes a serem citados que minha memória septuagenária já não me permite lembrar. Mas vamos ficar como a escolha dele por europeus como o ATLETA DO SÉCULO!

E olha que ele competiu com gente como Muhammad Ali; Jesse Owen; Maradona; Michael Jordan; Roger Federer; Nadia Comaneci; e tantos deuses do olimpo dos esportes.

Mas Pelé também fez gols em outras áreas, como por exemplo pedir atenção às crianças pobres, como a que ele foi em Três Corações e Bauru até chegar em Santos, reivindicação de quando do milésimo gol no Maracanã;
em flexibilizar em benefício dos atletas as rígidas leis da contratação dos jogadores nos clubes de futebol;
e clamar por mais amor desde os Estados Unidos, como disse Caetano Veloso em uma bela composição: “Pelé disse love, love, love”.

Pessoalmente guardo na memória a minha primeira grande alegria com o futebol, esporte que iria adorar pelo resto da vida. Foi na conquista da copa do mundo de 1958 quando eliminamos o nosso complexo de vira-latas, como dizia Nelson Rodrigues.
Como foi bom ouvir naquele rádio que cortava o som de vez em quando a narração na voz de Edson Leite a gritar emocionado o quinto GOL DE PELÉ PARA O BRASIL contra a Suécia.

Eu contava apenas 8 anos e dois meses de idade, e vi todos as pessoas transbordarem de felicidade, vez que o Brasil finalmente confirmava o que todos pressentíamos, mas precisávamos confirmar: erámos do primeiro mundo do futebol, o esporte mais popular do Planeta.

É uma das memórias mais gratas da minha infância.

Depois, como na cidade não tinha televisão, esperávamos chegar os domingos para assistir aos gols de Pelé pelo Santos no Canal 100, e ouvir “que bonito é” embalar as obras de artes esportivas expostas na telona acompanhada da música de Luiz Bandeira, orquestrada por Valdir Calmon, intitulada “Na cadência do Samba”.
Já em 1970, cursando o primeiro ano da Faculdade de Direito em Fortaleza, pude assistir na TV à cores o espetáculo da seleção brasileira de futebol jogar o fino da bola e conquistar a copa do mundo de modo inquestionável.

Sei que ao mesmo tempo que o Brasil comemorava como eu a vitória, pessoas com quem convivi anos depois, estavam sendo presas e torturadas e que seus gritos eram silenciados pelo ufanismo do futebol e do falso milagre brasileiro.

O futebol, como mercadoria e moeda governamental da ditadura já servia ali para a manipulação política.

Mas devemos separar as coisas. Aqueles jogadores em campo, na sua totalidade advindos das camadas pobres da periferia sofrida, proporcionavam alegrias ao povo brasileiro, e o uso oportunista disso pela ditadura não deve diminuir o feito deles como representantes do que há de melhor no Brasil, o seu povo.

A conquista definitiva da taça Jules Rimet não deve ser relacionada como apoio aos ditadores de plantão, até porque outro eram os ofícios dos jogadores: mostrar ao mundo a excelência do nosso futebol, que junto com a música nos coloca num patamar de igualdade com o chamado primeiro mundo.
Como você, Pelé, que conta hoje 82 anos, tenho 72 anos, e já não tenho o mesmo vigor físico dos tempos em que aos 12 anos procurava lhe imitar dando bicicleta num jogo de futebol e quebrei um braço.

Meus caminhos foram outros, como advogado de causas populares já na segunda metade dos anos 70 tive oportunidade de ver como é duro se posicionar ao lado do povo de forma crítica e atuante como atesta meu currículo pessoal, mas nem por isso me dou ao direito de negar os seus feitos e sua importância majestática de Rei do Futebol.
É claro que me identifico mais com um Sócrates, Afonsinho do meu Botafogo, Reinaldo e Casa Grande que são mais próximos da minha tribo, mas reverencio e agradeço a sua existência, até porque sendo você um menino de infância pobre e da etnia africana que conseguiu resgatar o Brasil do anonimato como nenhum outro brasileiro e é reverenciado mundialmente, nós os brasileiros, neste momento em que as suas forças físicas já não podem proporcionar os prodígios de antes, devemos dizer apenas,
OBRIGADO PELÉ,
por você existir, e saiba que você jamais morrerá na memória de todos os brasileiros.

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Obrigado, Pelé!