“Oh! Bendito o que semeia
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!”
Castro Alves
Relutei em usar o título “das massas” neste artigo porque o acho pejorativo; dão a impressão de um bando de gente, e como diz Caetano Veloso “gente é pra brilhar”.
Mas o termo cabe quando se trata de uma análise de comportamento político de uma coletividade manipulada por palavras, imagens, favores, e por sentimentos e formação de juízo de valor diretamente ligado às condições de vida (moradia e comida, principalmente).
Quando analisamos o porquê de um povo culto como o alemão embarcar na tragédia da segunda guerra mundial engolindo as lorotas nacionalistas do Terceiro Reich nazista, compreendemos melhor o que seja “raciocinar pela barriga”.
O que levou o povo brasileiro em 2018 a votar expressivamente (57,1 milhões de votos) em alguém que anunciava e prometia posturas de morte afirmando que a ditadura deveria ter matado 30 mil subversivos (ele superou a promessa, vez que se pode colocar na sua conta, no mínimo, uns 200 mil mortos por covid-19 graças à relutância na compra de vacinas, e insistência em tratamentos precoces ineficazes), senão a lavagem cerebral midiática de promessa de esperança a um povo miserabilizado e ansioso por redenção via um anunciado novo salvador da pátria?
- a votar em quem teve como simbologia de governo as armas da morte, mas falando em Deus acima de tudo?
- que fez apologia de torturadores como se fossem heróis do povo brasileiro?
- que condecorou notórios milicianos e encorajou seus militantes a apoiar assassinatos como o da vereadora Marielle Franco?
- que havia sido expurgado do Exército por ter planejado explodir a represa de água do Rio Guandu no Rio de Janeiro, cuja ideia caso fosse consumada, mataria centenas ou milhares de pessoas?
- que se elegeu sempre com base em defesa de interesses corporativos militares e, portanto, setorizados, sem considerar o país como um todo, e sem jamais apresentar qualquer proposição construtiva para a sua tão (por ele) endeusada pátria?
- alguém desqualificado intelectualmente e moralmente, cuja maior exposição foi sempre deixar transparecer a sua misoginia, homofobia, racismo e tantas outras mazelas que formatam um pensamento conservador, excludente e segregacionista?
- que nunca havia administrado sequer uma lojinha de chocolates destinada à lavagem de dinheiro escuso?
- que se apoiando no discurso falso do combate à corrupção prometeu uma vaga no STF ao seu ambicioso Ministro da Justiça para traí-lo como o fazem todos os oportunistas ávidos de poder, etc., etc. etc.?
Foi a miséria de um povo ultrajado (mesmo que culto) pelas condições sociais a que fora submetido em razão da derrota na primeira guerra mundial aquilo que levou o povo alemão a elevar um cabo do Exército e frustrado artista plástico a Führer (guia condutor) do Terceiro Reich e seu Comandante Supremo que levou o seu país a uma guerra mundial insana.
Como se conceber e se explicar o apoio a alguém que terminou por causar a morte cerca de 50 milhões de pessoas mundo afora, sendo de 7 milhões de pessoas em seu próprio país e na eliminação física de 6 milhões de judeus na Europa, e no cometimento de todos os tipos de injustiças em nome de preceitos absurdamente aceitos como válidos, tais como “necessidade de espaço vital”; “importância da pureza étnica ariana”; “germanização da Europa”; “endeusamento da capacidade produtiva do trabalhador alemão (mas recorrendo ao trabalho escravo dos outros durante a guerra)”; “rigor e disciplina”; “ressarcimento pelos prejuízos da primeira guerra mundial”, etc., etc., etc.?
Estou convencido que a miséria social aliada a uma promessa de salvação da pátria a partir do combate (falso) à corrupção com o dinheiro público, num quadro de depressão econômica cuja causa foi atribuída convincentemente à esta mesma corrupção (sem que ninguém falasse durante a campanha em crise do capitalismo, o verdadeiro vilão omitido), calou profundo na consciência de grande parte das massas à espera de um Messias de carne e osso atingido por uma facada (Mandrake???) tal qual o mártir da cristandade e que pudesse redimir a frustração social renitente.
Paradoxalmente, a miséria provoca duas situações conflitantes entre si. A primeira situação diz respeito ao fato de que a miséria por si só não é revolucionária, mas, bem ao contrário, costuma ser o ingrediente apropriado para a acentuação da submissão dos miserabilizados pelo capital ao dito cujo.
A segunda situação vai no sentido inverso, ou seja, nos países economicamente mais desenvolvidos, ou que minimamente o sejam, quando a miséria bate na porta da população os governos se desestabilizam e perdem apoio popular e força; é quando a miséria joga contra o despotismo.
O Brasil, por mais pobre que seja, ainda está na frente de muitos outros países mundo afora, e a nossa depressão econômica é fator de alternância política do poder sem que a essência dos problemas seja superada.
O ditador sanguinolento Médici, à época do falso milagre brasileiro financiado pelos Estados Unidos (a conta viria logo depois), recebia aplausos em estádios de futebol enquanto os defensores do povo eram assassinados e torturados nos cárceres da ditadura.
Fernando Henrique Cardoso se elegeu como controlador da inflação com o plano real do Governo Itamar.
Lula ainda vive politicamente graças às boas lembranças do seu primeiro governo bafejado pelos preços em alta das commodities.
Fico a imaginar o que seria de nós se o Boçalnaro, o ignaro, houvesse sido bafejado por um fator econômico qualquer, mesmo que momentâneo, e obtivesse bons resultados na economia, tal qual ocorreu com Hitler na segunda metade dos anos de 1930.
Aliás, o que seria de um candidato que resolvesse falar a verdade para o eleitor?
O que seria se dissesse que o sistema capitalista no qual está inserido e pelo qual pretende se eleger é de completa exploração, está colapsando, promovendo miséria e uma crise ecológica sem precedentes, e que precisa ser superado?
O que seria se dissesse que com a falência do Estado sequer as demandas sociais básicas (saúde, educação e segurança pública) podem ser atendidas eficazmente porque o dinheiro dos impostos vai para pagar os juros da dívida?
– o dinheiro vai para o financiamento político eleitoral dos partidos?
– para os subsídios de impostos a grandes empresários;
– para financiar os gastos com a infraestrutura capitalista (estrada, aeroportos, portos fluviais e marítimos; energia?
- para os juros subsidiados pelos bancos de desenvolvimento econômico (pretensamente social)?
- que os gastos com os poderes institucionais (executivo, legislativo e judiciário) são absolutamente incompatíveis com a renda média dos brasileiros?
A primeira coisa que lhe aconteceria seria ser substituído como candidato do partido, e ainda por cima processado por falta de decoro político eleitoral, e com sua candidatura impugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
As massas são conduzidas como gado para o curral. Agem orientadas por simbologias e convencimentos midiáticos; pela revolta causada pela miséria a que estão submetidos; e tudo muito bem direcionado para fazê-las acreditar falaciosamente que o novo governante pode dar um direcionamento diferenciado ao seu destino, mesmo dentro das regras capitalistas estabelecidas.
A massa é induzida a creditar que tudo se resume a uma questão de boa ou má governabilidade, pois aprendeu a positivar todas as categorias capitalistas como se estas fossem dados ontológicos e imutáveis de suas existências.
A coisa começa na escola, quando todos exaltam as virtudes da mercadoria trabalho (dos comunistas tradicionais aos nazistas e capitalistas liberais) sem que se possa aperceber que é justamente na categoria capitalista trabalho (que não tem nada a haver com atividade produtiva necessária à vida) onde reside o germe original da manipulação.
Ainda ontem assisti pela TV (com propaganda paga com dinheiro público) à chamada de jovens para o voto na qual jovens atores afirmam graciosos e ingênuos: “eu quero decidir sobre o meu futuro pelo voto”!
É assim que a democracia burguesa age, dizendo-se capaz de curar e corrigir toda e qualquer distorção administrativa circunstancial pelo processo eleitoral e sucessão governamental, e propagandeia que ela é a única alternativa, e que fora dela somente resta a nefasta ditadura.
É assim que a cada ciclo de decepção com projetos políticos governamentais que se alternam num eterno pêndulo da ineficácia (tal qual o pêndulo daquele relógio de parede que nunca sai do lugar) ocorre a alternância do poder político (para que o verdadeiro poder, o econômico, permaneça incólume), e que possa ocorrer a transferência de responsabilidade num processo de representação política destinado à dominação de vontades.
Se a vontade popular manipulada fosse “a voz de Deus” como alardeiam os políticos, endeusando a pretensa vontade soberana do voto (todos eles dizem: “há que se respeitar o voto”, o mantra falacioso que os protege) Jesus Cristo não teria sido crucificado. Afinal não era ele o filho de Deus feito homem?
Quando o capitalismo descobriu que pelo voto podia controlar tudo, liberou o voto das mulheres, dos negros, dos meninos, e assim a exploração foi politicamente legitimada.
Há que se horizontalizar a administração da vida social nos seus campos de produção social, distribuição da riqueza material, direito e ordem jurídica, e de modo que o exercício deste gerenciamento direto dos seus interesses possa prover o povo de uma consciência sobre seus próprios erros e acertos, sem transferência de responsabilidades para os seus algozes na vida privada e pública, como hoje ocorre.
Dalton Rosado.