O poder político

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a crença,
Vão-se sonhos nas asas da descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Augusto dos Anjos

O que caracteriza o poder nas sociedades humanas é o seu modo de produção e distribuição dessa produção. Nas sociedades cuja relação social se caracteriza pela mediação sob a forma valor o capital é o verdadeiro poder; o poder político apenas serve ao capital.  
A democracia burguesa nada mais é do que a forma política de dar sustentação ao capital, mesmo que o governante político queira dar ao Estado uma feição humanista; a ditadura burguesa, totalitária na sua essência mais recôndita, serve ao capital obedecendo às ordens da sua lógica mais insensível, e por isto, é bem mais cruel e desumana.  
Dito isto, a esquerda anticapitalista, investida no poder burguês, representa uma contradição no objeto, vez que deverá cumprir os preceitos de uma ordem jurídica constitucional elaborada para determinar os mecanismos capitalistas de mediação social, e mais do que isso, agir de modo a resolver os problemas econômicos do capital, ou seja, a esquerda se obriga a ajudar a conservar o que diz combater, quando mais fidedigna aos preceitos doutrinários originais de sua concepção.  
Os bem-intencionados governantes políticos de esquerda dirão que é melhor para o povo ter um governo social-democrata burguês do que uma ditadura.  
Eu diria que isto é uma verdade apenas stricto sensu, mas não o é lato sensu.  
Os sociais-democratas burgueses, como Lula, devem assumir o papel que lhes cabe de tentar humanizar o capitalismo sob a perspectiva do seu desenvolvimento numa versão esquerdista de crescimento do bolo para melhor dividi-lo (como aliás, dizia Delfim Neto, na sua defesa capitalista ditatorial militar), mas não devem usar as insígnias anticapitalistas, pois isto corresponde a uma representação putativa indevida.
A verdade é que Lula, desde o começo, mostrou-se um social-democrata, acentuando cada vez mais tal característica, seja quando expulsou os marxistas do PT (sempre falou mal dos comunistas) ou lhes exigiu testemunho de fidelidade ao lulismo;
– quando defendeu o sindicalismo de resultados sem questionar a propriedade dos meios de produção, mas focado apenas na pretensa melhoria salarial do trabalhadores;
– quando criou um partido de trabalhadores a partir da institucionalidade democrático-burguesa e de uma relação capital/trabalho consensual na qual, no melhor estilo capitalista, estabelece-se uma relação de disputa de interesses classistas num mesmo campo, vez que são ao mesmo tempo antagônicos e convergentes na busca pelo valor (dinheiro e mercadorias); ou seja, têm o mesmo objeto;
– quando acredita na solidez dos cânones burguesas de divisão e respeito aos poderes institucionais republicanos (doutrinariamente burgueses desde o iluminismo e revolução francesa), o que o tornou confiável perante tais poderes, mercado, governantes dos países que detêm a hegemonia burguesa mundial, forças militares mais evoluídas no conhecimento da geopolítica mundial e da importância do Brasil nesse contexto, etc;  
– quando defende o interesse empresarial multinacional afirmando que “se fosse presidente a Ford não teria deixado o Brasil”, e aceita o lucro do capital financeiro dos bancos como forma de melhorar a receita tributária do imposto sobre a renda nos moldes capitalistas;
– quando concilia com os partidos políticos de direita e de centro para garantir a governabilidade burguesa e todo o poder político que assim aufere e proporciona aos que lhe são fieis (afinal o Estado burguês é rico em sinecuras e salários advindos de suas tetas extraídas dos impostos cobrados ao povo já exaurido pela extração de mais-valia);
– etc., etc.,etc.  
Sim, Lula e qualquer pessoa é livre para pensar e criar convicções sobre o que pensa ser melhor para o povo, seja ele de sua própria nação (os patriotários costumam ver apenas como merecedores de direitos os seus nacionais, numa expressão de xenofobia clara) ou do mundo.

Mas há um direito natural e um senso de justiça moral e ética que se sobrepõe ao pensamento individual e doutrinário; o capitalismo afronta o direito natural.  
O capitalismo se constitui como uma lógica desumana, segregacionista, escravista, socialmente destrutiva, e que agora, no momento do seu limite interno de expansão ditado por suas contradições internas e predação ecológica causadora do aquecimento global (limite externo), inviabiliza-se.
É por isso que afirmo que a social-democracia, lato sensu, termina por se assemelhar politicamente aos insensíveis governantes de direita no resultado final, quando se vê obrigada a garantir a funcionalidade Estatal deficitária e negar os benefícios sociais e salariais da maioria do povo.  O estado, sob qualquer forma política, é opressor.
O capital é autodestrutivo e no seu suspiro de moribundo tenta nos arrastar para o abismo, e a todos, sejam mal ou bem-intencionados.
Hoje entendo o porquê de Lula ter expulsado a mim (fundador do PT no Ceará e um dos coordenadores da primeira vitória do PT numa capital, que originou a experiencia da Administração Popular) e ao grupo que eu pertencia e pertenço (hoje caracterizado como Crítica Radical ao valor e à dissociação de gênero, como estudiosos da crítica da economia política), e mais do que ter ressentimentos disso, considero que tal episódio representa uma honrosa e natural consequência de divergências profundas de concepções revolucionárias.
São muitos os valorosos companheiros que por estratégia política circunstanciais e nos estertores da ditadura militar no Brasil ajudaram a fundar o PT e deles tiveram que se ausentar ou serem expulsos por absoluta incompatibilidade de pensamentos e posicionamentos sociais.
Do mesmo modo que os militares saíram pela porta dos fundos em 1985; o Boçalnaro, o ignaro, representante da direita, saiu vergonhosamente pelo aeroporto rumo à meca do capitalismo mundial, os Estados Unidos com medo de ser criminalizado e preso como genocida; e Dilma Rousseff somente sofreu o impeachment porque explodiu a insatisfação popular no seu segundo mandato, com inflação alta, PIB baixo e desemprego estrutural crescente.  
Governar sob o capital significa sofrer desgaste inevitável, principalmente num país da periferia do capitalismo como é o nosso caso.
Para ficar apenas num exemplo das nossas dificuldades de país de economia fraca (ainda que sejamos importantes estrategicamente e do ponto de vista da riqueza material, com exportação de alimentos e minérios de baixo valor agregado) pagamos taxa de juros de 10% ao ano em USD, que representou mais de R$ 800 bilhões no exercício de 2021, ou seja, cada brasileiro pagou cerca de R$ 4.000,00 por ano (velhos, crianças, pessoas inválidas, desempregados, etc.), enquanto há países ditos ricos que pagam taxas decrescentes de juros por suas dívidas.  
A discrepância salarial no Brasil é abismal. Um Juiz de primeira instância ganha num mês o que um operário ganha num ano e meio. Tal fenômeno decorre do fato de que há no Brasil um desemprego estrutural; uma cultura advinda da exploração colonialista e escravista; e a baixa competitividade brasileira de manufaturados na guerra concorrencial de mercado.  
Resumindo: somos pobres em riqueza abstrata, e é o povo quem paga por isto.
Lula, por mais bem-intencionado que seja, depende de uma imunização governamental somente possível de ser obtida com alta popularidade, e vai enfrentar as dificuldades próprias de uma depressão econômica nacional e mundial severa, e os que o aplaudem hoje, serão os mesmos que o apedrejarão amanhã, caso não entregue as melhorias prometidas.  
Não torço pelo pior, mas a racionalidade da análise conjuntural me informa que por aí vêm chuvas e trovoadas além dos aviões de carreira.
Feliz ano novo, se possível.  

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