O Marx traído e o crescimento do fascismo

Há contradições na obra de Karl Marx?
Há flagrante diferenciação do Marx de 1848 (aos 30 anos), no auge das dores europeias do parto da transição revolucionária do feudalismo para o republicanismo capitalista e o Marx dos Grundrisse, seus rascunhos que foram por ele resumidos em 1858 no primeiro volume de O Capital e nos outros volumes compilados por Friedrich Engels depois da sua morte em 1883 aos 64 anos.
​Assim, não há contradição quando se entende que ele fez uma autocrítica de si mesmo ao caminho da maturidade (já aos 40 anos) no que se refere ao sujeito da revolução anticapitalista, como adiante abordamos.
​Na vasta obra de Lênin, tendo por base o Marx politicista, mais voltada para a tomada do poder numa Rússia agrícola, não se encontra praticamente nada sobre a crítica marxiana do valor; tal observação pode também ser feita sobre a obra bem menos abrangente de Mao Tsé Tung.
​O Marx do Manifesto Comunista, de 1848, escrito em parceria com Engels, exalta a força da classe operária como sujeito da revolução, tanto assim que terminam dizendo: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos! Não tendes nada a perder, a não ser vossos grilhões”.
​Mas o Marx dos Grundrisse, rascunhos decorrentes dos seus estudos de dez anos depois (retomando os estudos do Marx filósofo e crítico da economia política contidos na obra da juventude, com 26 anos, denominada Manuscritos Econômicos-Filosóficos, de 1844) prevê o declínio do poder da classe operária como produtora da substância primeira e primária do capital, o trabalho abstrato produtor de valor, quando o desenvolvimento da tecnologia aplicada à produção de mercadorias (tangíveis e serviços) tornasse prescindível seu uso em maior parte por tal categoria capitalista.
​É evidente que a luta armada para a tomada do poder de então, fosse ele predominantemente feudal (como na Rússia de 1917) ou republicano burguês, pelo proletariado, num estágio tal de desenvolvimento tecnológico da produção social sob a forma valor, por ele pensado (e que hoje se concretiza), perderia força como sujeito revolucionário.
E o que seria, então, o móvel da revolução emancipatória pela superação do capitalismo em tal estágio tecnológico desenvolvido das relações sociais de produção de mercadorias? Esta é a grande incógnita a ser respondida diante do impasse social sob o qual vivemos e que ameaça a humanidade de extinção sob uma guerra nuclear ou catástrofes ecológicas mais iminentes.
Chegamos ao estágio no qual os nichos de emprego surgidos pelo uso da tecnologia na produção e serviços são substancialmente menores do que a dispensa do trabalho abstrato, e tal fenômeno, previsto por Marx há 165 anos, está a acontecer.
Disse Marx nos Grundrisse que quando tal fenômeno ocorresse faria voar pelos ares toda a lógica capitalista. A esquerda dita marxista institucional desconhece, ou conhece e ignora, o que é pior, a autocrítica implícita que Marx fez de si mesmo na maturidade, como dissemos antes, daí traí-lo cotidianamente de modo voluntário ou não, e usando o seu nome (como o fazem mais claramente os chineses).
Já os sociais-democratas, antimarxistas, são apenas equivocados crentes na humanização do capitalismo; entendem, equivocadamente, que o pé de laranja pode dar manga, caso seja enxertado.
Acresça-se à ilusão social-democrata de humanização do capitalismo o fato de que os parlamentos burgueses são formados na sua grande maioria por parlamentares eleitos pela força do capital dos grotões mais profundos de cada país, onde a liberdade de escolha e discernimento eleitoral é quase nula.
A esquerda, quando muito, compõe 20% das casas parlamentares e apenas legitima, com sua presença, o domínio burguês do processo legislativo. O povo somente assiste passivo à sua representação espúria delegada.
Mas o capitalismo cava a sua própria sepultura (Marx).
O capitalismo somente cresce e se sustenta com o aumento do volume de extração de mais-valia, e esta é uma regra inquestionavelmente comprovada e básica que foi descoberta por Marx.
Ora, se diminui a massa global de extração de mais-valia em face do uso da tecnologia na produção impulsionada pela guerra concorrencial de mercado que obriga os produtores concorrentes à redução de custos de produção como forma de vitória no mercado, é evidente que aí se evidencia a autodestrutibilidade de uma lógica contraditória que está fadada ao fracasso num determinado momento histórico.
O fracasso do capitalismo one world enquanto forma de relação social sustentável da vida das pessoas e da sua própria funcionalidade, gera os seguintes fenômenos:
– o desemprego estrutural;
– falência do Estado que a ele serve;
– incapacidade de reprodução do capital (leia-se valor) no nível exigido pela própria dinâmica da sua necessidade do crescimento constante sem o qual definha inexoravelmente;
– inflação ditada pela emissão de moeda sem valor;
– fome e miséria em vastas regiões do planeta e emigração forçada para as regiões nas quais ainda há vida capitalista, mesmo decadente;
– decadência e depressão econômica nos países de economias dominantes e hegemônicas (G7, como conhecemos);
– uso predatório e irracional dos recursos naturais com poluição de rios, mares, solo, sub-solo, e atmosfera;
– aquecimento da temperatura planetária causada pela emissão de gases que promovem o feito estufa e alteram os fenômenos climáticos;
– guerras por hegemonia política e econômica.
Os fenômenos acima elencados estão presentes mais do que nunca na vida social mundial atual, atribuindo-se a eles como causa apenas a questão da má governabilidade, e não à sua falibilidade intrínseca.
Diante dos impasses causados pela inviabilidade de um modo de relação social e do desconhecimento sócio-científico da necessidade de superação de um modo de relação social obsoleto que alcança o seu limite existencial histórico, observam-se posturas políticas consubstanciadas em dois segmentos claramente definidos:
​- a volta de posturas políticas totalitárias, de cujo militarista objetivando a contenção dos segmentos sociais organizados reivindicadores e questionadores das misérias sociais e comportamentos retrógrados nos costumes, e com visão do liberalismo clássico na economia, não raro acompanhadas de visões fundamentalistas religiosas;
​- a defesa insustentável de uma retomada do desenvolvimento econômico pelos sociais democratas e pela esquerda institucional com visão keynesiana em seus vários matizes.
​Ora, ambos os segmentos políticos acima referidos têm como base de suas posições a relação social capitalista que se inviabilizou, como se o capitalismo fosse a única forma possível de relação social, e aí se identificam. Consideram que o capitalismo é algo inerente à vida social humana; como um dado ontológico e inevitável da nossa existência, e não um dado histórico com nascimento, vida e morte.
​Os fascistas voltaram à cena social sem o menor pejo e esquecem-se dos horrores da guerra mundial causados por sua doutrina totalitária (contraditoriamente autointitulada de nacional socialista, da sigla nazi) com seus adeptos mais fanatizados não se constrangendo em defender e usar práticas anti-civilizatórias e símbolos nazifascistas com a complacência e apoio silencioso e consentido dos seus aliados conservadores menos audaciosos, bem como com o beneplácito dos fundamentalistas religiosos (no Brasil o pentecostalismo conservador da prosperidade fake) que a eles se juntam numa exacerbação alucinada que beira o ridículo.
​Mas a esquerda institucional tem culpa nesta ressureição dos que estavam escondidos e silenciosos no subsolo da civilidade e agora emergem para a luz do dia.
Tenho vários amigos por quem tenho o maior apreço que se emocionaram com a posse de Lula e dos muitos militantes das causas ecológicas, antirracistas, anti-homofóbicas, antixenófobas, antifundamentalistas religiosas, antimisóginas, etc. Entendo a emoção, mas isto não basta.
É evidente que os dirigentes ora empossados nos organismos estatais que estão sendo reestruturados após terem sido desmantelados pelo governo fascista derrotado, darão suas valiosas contribuições enquanto estiverem no poder político estatal.
Mas o Estado é como a fábula do escorpião que denuncia a sua natureza peçonhenta num dado momento e é quando mostra a sua natureza opressora de serviçal do capital.
Lula é e sempre foi defensor da relação capital/trabalho negociada, sem jamais questionar a essência de tal relação, e seu apego ao poder político burguês é o que o faz acender uma vela a Deus e outra ao diabo.
Os dirigentes sociais-democratas do mundo inteiro e os militares sabem que Lula é confiável ao sistema capitalista e consideram que é melhor que o pêndulo da alternância do poder político estatal esteja circunscrito à eleição periódica de governantes de direita e centro direita de um lado e sociais-democratas inofensivos do outro.
Assim, alguma coisa muda para que tudo continue na mesma.
O problema é que não basta que pessoas bem-intencionados estejam em cargos de instituições sociais incumbidas de questões humanas sensíveis, porque a questão de base e principal, a segregação capitalista em seu momento de saturação interna e externa, permanece intocada e agravada.
Foi por isto que Marx disse, repetindo o adágio popular consolidado há tempos, que o inferno está cheio de gente bem-intencionada.
Aliás, um partido de trabalhadores, é, no seu significado essencial, uma afirmação do capital sob a perspectiva do interesse do trabalhador e do trabalho, enquanto categorias capitalistas. Se se quiser uma ruptura com o capital há que se superar a categoria trabalho e toda a sua entourage existencial, tanto como partido político ou sindicato.
Nem bem ou mal começou e já surgem as contradições na questão da economia capitalista sob comando do Lula.
Como já se infere do noticiário, a conservação dos preços do diesel e da gasolina acompanhando preço de mercado, ditado pela preservação da saúde financeira da Petrobrás, estatal de capital aberto, e sem que um estado falido possa subsidiar os preços, implica num custo social demasiado pesado e com o risco iminente de chiadeira do setor de transportes com seu poder de paralisia sufocante para qualquer governante que queira se manter no poder político.
Sabemos que a Previdência Social tem déficit contabilizado de quase três centenas de bilhões de reais que foram supridos pelo erário no ano de 2021, e vem o novo ministro da previdência social aquinhoado com cargo em nome da governabilidade (como tantos outros que trocam votos no parlamento por poder estatal, numa continuidade do fisiologismo político que Lula reconhece como prática natural e saudável do jogo político) e diz que não há déficit neste setor, e se obriga a se desdizer após levar um pito do chefe.
Vamos continuar a pagar juros de 10% ao ano de nossa dívida pública enquanto os países do G7 não pagam nada de juros de suas colossais dívidas, e assim, vamos continuar sustentando o sistema financeiro internacional com o sangue e suor do nosso povo, como o fazem todos os países da periferia do capital, pois se não o fizermos não poderemos rolar a nossa dívida e se estabelecerá um caos financeiro em nosso país.
No arco de alianças e seu extenso guarda-chuvas cabe até aliados de milicianos, ainda que em bem menor escala do que os que condecoraram e se tornaram aliados do clã que dizia bastar um cabo e um soldado para fechar o STF. Estes últimos desconheciam o poder da elite brasileira em doar os seus anéis por medo de perderem os dedos e, por isto, foram defenestrados do poder político.
Foi a esquerda no poder político sob Dilma, que diante da grave crise do capitalismo que se iniciou ainda em 2008/2009, na crise da bolha financeira estourada (crise imobiliária e financeira do sub-prime), e que não era nenhuma marolinha, sofreu impeachment mesmo conciliando ao extremo com o sistema político-econômico-financeiro, e sua queda se deu por impopularidade explorada pelos parlamentares do centrão e alhures.
O quadro econômico mundial e brasileiro é ainda pior do que aquele de dez anos atrás, que antecedeu à pandemia de Civid19, que piorou o que já era demasiado ruim, e a esquerda institucional e aderente insiste em apelar para a retomada do desenvolvimento econômico, ou seja, usa a causa do mal (a relação social sob a forma-valor) para a solução do mal.
Precisamos compreender que a frustração com a covardia do Boçalnaro, o ignaro (que só confirmou ser boçal e ignorante, além de frouxo e infiel à sua horda de fanáticos mitológicos, fugindo para a dineylândia), por grande parte da direita fascista, não significa renúncia destes ao fascismo.
Diante da queda do capitalismo eles querem mais capitalismo totalitário, sem os pesos e contrapesos da democracia burguesa, e a esquerda com sua pusilanimidade (mistura de ignorância, em alguns casos, e noutros por interesses fisiológicos institucionais, visão estatizante capitalista dos meios de produção e medo) pode jogar gasolina nesta fogueira.
Aguardemos.

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