O caso do garoto Miguel, que caiu do 9. andar, foi racismo?

O que ocorreu com o garoto Miguel, de apenas 5 anos, foi algo horrível. Não há dúvida. Mas pode ser caracterizado como racismo? Para saber disso, farei comparação entre o caso Miguel e o caso George Floyd, homem negro morto por policiais brancos, nos EUA.

 

É importante entender que o racismo brasileiro tem características diferentes do racismo estadunidense. Os EUA tiveram leis separatistas: negros e brancos eram segregados por lei. Não podiam frequentar os mesmos ambientes, não podiam se casar, não podiam sequer beber água no mesmo bebedouro. Isso criou naquele povo um sentimento segregacionista que perdura até hoje, mesmo aquelas leis já tendo sido revogadas. A consequência disso é um racismo descarado, que ocorre a céu aberto. Lembre-se de como ocorreu a morte de Floyd: o policial branco em nenhum momento se importou com a presença do público, das câmeras. Ele matou Floyd em público, no meio da rua, para todos verem. Após eclodirem as manifestações antirracistas, muitos estadunidenses brancos pegaram em armas – alguns estados permitem essa prática – e foram para as ruas com a justificativa de defender suas propriedades. Há cenas chocantes de civis e policiais – todos brancos – lado a lado, “defendendo” as propriedades. É uma cena icônica daquele país.

 

Mas, e o caso do garoto Miguel, pode ser considerado um ato racista? A patroa não empurrou a criança e ainda pediu desculpas à mãe do garoto, após o ocorrido. Isso indicaria que não houve racismo, certo? Não é bem assim. Como foi dito, o racismo brasileiro é diferente, nosso racismo é velado, escondido. O Brasil nunca contou com leis separatistas, como os EUA. Isso motiva algumas pessoas a afirmar que aqui não há racismo. Todavia, dados indicam uma profunda desigualdade entre negros e brancos: sempre com os negros em desvantagem. Um desses dados tem relação com a desvalorização da vida de pessoas negras. São pessoas matáveis. Será que a patroa da mãe de Miguel deixaria sua filha de 5 anos sozinha em um elevador? Será que ela deixaria a filha branca da vizinha do prédio de luxo na mesma situação? A vida de Miguel era descartável em um país onde o racismo age silenciosamente.

 

Mas como entender o caso como racismo se a patroa pediu desculpas? Essa é outra característica de nosso racismo: nós nos envergonhamos dele, quando é publicizado. Enquanto o racismo é praticado em nosso mundo íntimo, está tudo bem, mas, quando ele é revelado para a sociedade, nos envergonhamos e tentamos com todas as forças nos afastar daquilo. O pedido de desculpas só reforça o racismo impregnado na situação. Como diz Florestan Fernandes, o brasileiro “tem preconceito de ter preconceito”, ou seja, temos tendência a sempre negar nossos preconceitos. Para exemplificar: a mesma coisa ocorreu com a detratora do goleiro Aranha, em 2014, e também com o então deputado Jair Bolsonaro ao proferir frase racista contra a cantora Preta Gil, em 2011. Ambos se desculparam com ênfase de seus atos. O deputado Bolsonaro chegou a dizer até que não entendeu a pergunta que lhe foi feita pelo repórter.

 

Floyd e Miguel entraram para as estatísticas do racismo em seus países. Acredito que as características do assassinato de Miguel o encaixem bem como um caso de racismo, conforme ficou claro nos argumentos apresentados. Mas como resolver esses crimes racistas? Nos EUA, sempre foi fácil juntar multidões em atos antirracistas, visto que as ações racistas sempre foram comuns e chocantes, devido às características do racismo daquele país. Mas, e no Brasil? Como acabar com uma prática que quase sempre é velada e sempre conta com um enfático pedido de desculpas, após o ocorrido? Isso é o que temos que resolver para evitar mais mortesinjustificadas de pessoas negras. Admitir a existência de racismo pode ser um primeiro passo importante

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