Os ponteiros do relógio da São Benedito repousavam indolentes, um sobre o outro, cronometrando doze horas. O sol escaldante castigava impiedoso o coração da capital mafrense, sapecando o lombo de aventureiros que, movidos pela mais dura sobrevivência, desafiavam-no num balé caótico, num vai e vem incessante. À minha direita, operários erguiam feitos formigas incansáveis mais um esqueleto de cimento e concreto, cercado por madeirites nos quais se lia em letras graúdas: Não há mais vagas! A necessidade mais aguda nos faz despertar, ponderei, o espirito épico ou nos empurrar ladeira abaixo a escolhas nada republicanas. É que na tortura, toda carne se trai, registrou o poeta Zé Ramalho.
Recolhido à sombra de uma árvore amiga, de onde deitava o olhar sobre as trivialidades da vida urbana, calculei o exato momento de cruzar a rua driblando carros e motos que passavam ameaçadores tricoteando o negro asfalto fumegante àquela hora do dia. Restavam-me míseros quinze minutos, entre uma aula e outra, para chegar a meu destino na unidade Sesc-Maranhão onde uma leva de colegiais, oriundos das dobras mais despossuídas me esperavam como crianças aguardam sedentas o peito materno. Estas sugam o leite que lhe irriga a respiração; aqueles, o conhecimento que lhe garanta um lugar ao sol, um sol mais brando. E não se pode esquecer: os livros são alquimistas da transformação, uma magia revolucionária a qual amantes da tríade Deus, pátria e família abominam. Quando esses fariseus escalam os degraus do poder, é a cultura, os centros acadêmicos, os intelectuais e quem faz do pensar uma profissão de fé que eles golpeiam, num primeiro ato.
Apressado, pus meus pés sobre a praça Pedro II. Ali, nos anos sessenta, gente de hábitos refinados e de poucas obrigações com o relógio se agremiavam para celebrar a cultura, pautar a crônica política e lançar palavras ao vento. De um lado, o Cine Rex se impunha vaidoso, do outro, o Bar Carnaúba, reduto de gente endinheirada e, no centro, o imponente Teatro Quatro de Setembro. Esse conjunto arquitetônico, agregado à Praça, esboçava um cenário idílico de cidade ainda provinciana. Hoje, porém, se vê maculado por levas de alcoólatras e drogados que fizeram da Pedro II, sem hipérboles, uma latrina a céu aberto. O capital, na sua gênese, carrega essa flagrante contradição: ilhas de prosperidade e miséria quase absoluta a enfeiar a existência.
Sufocado pelo confronto entre ontem e o hoje e, sobretudo, pelos minutos que se escasseavam, acelerei o passo quando fui puxado por uma voz feminina, quase adolescente.
⎯ Oi, Prof., o senhor aonde assim vai tão apressado?
⎯ Vou indo aqui, minha linda, ao encontro da dura sobrevivência. A satisfação,
completei, da sala de aula há muito se reduziu a isto: correria e jugo pesado. Ela me esboçou um riso amarelo, e eu me fui célere, quase tropeçando nas pernas de um mendigo exposto à calçada, ao sol e, quase sempre, à indiferença dos passantes. Ainda tive tempo de enfiar a mão no bolso e presenteá-lo com uma moeda que tilintou onomatopeicamente num prato velho roto, de alumínio ordinário abandonado ao pé da parede, completamente vazio.
⎯ Deus te proteja e te guarde da praga do mau vizinho! Filtrei a ambiguidade na fala firme daquela alma, privada do mínimo e, antes que engendrasse um fio de reflexão, vi-me literalmente engolido por uma turba de manifestantes. Eram motoristas de ônibus deliberando mais uma paralisação. Altercavam por uma mais-valia que lhes garantisse algo além das três refeições: café, almoço e janta. A gente não quer só comida! A gente quer comida, diversão e arte, entoava a multidão, fazendo a força do seu canto reverberar nas paredes e vidraças da sede do poder municipal. Assustado, por estar no olho do furacão e com a polícia rondando feito cães caçadores, procurei rapidamente empreender fuga, desvencilhando-me da turba que marchava feito rolo compressor.
Já me sentindo abrigado na calçada do Sesc-Maranhão, exumei uma fala, quase esquecida, do velho Raul: – desde que o mundo se fez, as camadas populares carregam pedras para se construírem as pirâmides do Egito e eu sou um desses operários já que, na passagem dos anos oitenta, vivia, como professor horista, a dura realidade do trabalho precário sem saber que, trinta anos depois, essa pauta inundaria as páginas de jornais, telas de TV e assembleias sindicais.
Uma resposta
Inspiradora a forma como um virtuoso letrado vê a quase imperceptível poesia das cenas do cotidiano. Camilo França teceu a tela da cena urbana e nela lançou as tintas de seu olhar poético. O mundo precisa de mais Camilos.