Desigualdade, democracia, capitalismo e coesão social – IV, por Osvaldo Euclides

Por mais falho e imperfeito que seja o sistema de representação do povo no poder e por mais injusto e concentrador que seja o regime econômico, a democracia e o capitalismo conseguiram ao longo dos últimos dois e meio séculos fornecer e manter um cimento que deu concretude mínima aos melhores sonhos e às mais urgentes necessidades da grande maioria dos homens. A este cimento que a tudo dá sentido dá-se o nome de coesão social.

Quando os dois sistemas, o político e o econômico, entram em crise profunda e prolongada, esta coesão enfraquece e perde sua força agregadora. Na primeira metade do século XX, uma primeira grande guerra mal resolvida e uma longa depressão econômica (fruto em parte do fanatismo liberal) diluíram este cimento e o mundo lançou-se na devastadora segunda grande guerra.

Terminada esta segunda, ao contrário do que aconteceu na primeira, os líderes evitaram impor indenizações impagáveis aos derrotados. Ao contrário, ao invés de lançar um processo de austericídio (austeridade fiscal como panacéia), toda a Europa e o Japão foram beneficiados com fartos recursos e fortes programas de investimento e recuperação.

O resultado a história conta. De 1945 a 1975, o mundo experimentou os “gloriosos trinta”, ou “as três décadas de ouro”, as economias e as finanças dos países envolvidos na guerra se recuperaram rapidamente, houve crescimento econômico com distribuição de renda. A democracia e o capitalismo ganharam força e legitimidade.

A onda neoliberal que então (anos 1980) começou nos Estados Unidos e na Inglaterra mudou o curso da história. Seus efeitos foram terríveis, embora pouco percebidos e pouco divulgados, porque localizados aqui e ali, em países que precisavam “ajustar suas contas” e “rever seus modelos” e, para isso, eram convencidos a abrir seus mercados, privatizar suas riquezas, flexibilizar suas condições de trabalho, deixar flutuar o câmbio, enfraquecer seus governos, enxugar seus programas sociais.

Nesse período, enquanto a economia seguia para a direita, a política deu passos para a esquerda. Mas, apenas formalmente. A esquerda no poder é quase tão conservadora quanto a direita – e até certo ponto, isso é compreensível, aceitável, como se diz no “mercado” isso “está precificado”.

Agora, estamos nos efeitos das longas ondas da crise de 2007/2008. E, como antes da segunda grande guerra, todos os líderes políticos e todos os economistas recomendam programas de austeridade. Já se passaram seis anos e essa austeridade não traz resultados animadores, estimulantes.

O mercado financeiro, fonte e vetor da crise, segue impávido comandando a turba de austericidas, receitando tudo o que ele próprio jamais aplicou a si mesmo. Espera que as economias fracas e doentes se recuperem sozinhas, puxando-se pelos próprios cabelos. Enquanto isso, aproveitam-se os especuladores improdutivos e nocivos de todos os desequilíbrios (fiscais, monetários, cambiais, políticos) circunstanciais desses países vulneráveis e sem força para reagir sozinhos. Essa é parte importante da tragédia diária dos “mercados”: eles se alimentam do desequilíbrio, eles, portanto, fomentam o desequilíbrio, engordam-no e depois dele se servem.

Visto de cima, o cenário tem alguma semelhança importante com o que aconteceu entre as duas guerras. Não há, felizmente, clima nem motivação evidentes para uma terceira loucura, mas não custa ter cuidado com o cimento da coesão social.

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