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DA ADORÁVEL ARTE DE SOBREVIVER NA COMPANHIA DE AMIGOS OU DA PERSISTENTE VIGÍLIA À JANELA DO MEU QUARTO

Tenho à minha frente uma nesga de mar que alcanço da janela do quarto no qual me instalei com algumas leituras de urgência

Pois bem, da janela, a vista alcança pouca distância, sequer dá para enxergar a linha do horizonte, para onde ficam terras de África. Uma bruma fechada dá a impressão de navegação em alto mar.

Vi-me assim certa feita rodeado de horizontes sumidos ao navegar pelo cabo Horn, na Patagônia, nos rastros de Darwin e de Fernando de Magalhães.

De outros cantos, em terra firme, as notícias calaram. Ainda assim, tirante o que nos acontece a contragosto, suponho que as coisas estejam sem alterações por esses territórios afetivos.

Por aqui, visitas amiudadas aos cuidadores do corpo e da alma, as novidades da indústria farmacêutica, sempre presentes, que a perseverança na rotina dos cuidados de uma resistência feroz contra os caprichos medonhos de Jeová é “luta renhida que aos fracos abate e aos fortes, aos bravos, só faz exaltar”. Por mais que se pretenda distanciar dessa figura amantíssima, mais sofremos dos seus caprichos, assim acreditam as criaturas de fé. Quem sabe, não lhes sobra razão?

Ontem, encontrei os remanescentes da livraria, agora reunidos no Le Pain. Remanescentes, mesmo. Muitos dos antigos livreiros entregaram os pontos e aceitaram a decrepitude; outros, partiram por conta própria ao encontro de alguma coisa incerta e não sabida. Na busca de novos ares que dos da Terra só respiramos miasmas e regurgitações de ambições desmedidas. Já os recalcitrantes, como nós, poucas e bravas criaturas, tomamos às próprias rédeas em mãos — e assumimos o ar contemplativo da espera e das deslembranças que nos vão chegando com a idade ameaçadora.

Sobramos, ao fim e ao cabo, nós, dois médicos, um deles, experimentado nas artes do governo; outro, um cirurgião culto, de gestos precisos e ideias brilhantes. Um constitucionalista iluminado por rara perspicácia como curador de feitos históricos, bibliopatas e bibliofrênicos, mais alguns. Há, como eu, quem celebre pequenos prazeres sobreviventes, o hábito de rememorar coisas esquecidas, a exemplo de um antigo cúmplice de arroubos improváveis; alimentamo-nos, é certo, de circunstâncias, mais do que de fatos, de versões insinuantes, mais do que da observação ritual do que se afirma como justo, razoável e salutar.

Leitores, homens de cultura, todos. Ideólogos dissimulados pela boa educação e respeitosos das leis da tolerância. Gente de boa graça, de rara extração de inteligência, conversa afável, servida pela imaginação. Neste círculo de sonhadores não falta aplicação na busca de quimeras, outrora recusadas pela arrigância dos jivens que fomos um dia.

Nesta amável prática de conviviabilidade, servimo-nos dos fatos reais. À falta deste ingrediente essencial, desta receita de insumos vitais, construímos expectativas, desconstruímos o que a muitos parecerá real e nos instalamos no reino da utopia e das poucas verdades.

Descobrimos que somos, afinal, para nossa glória, “news fakers” , a “contre-poil” dos regramentos postiços de todos os excelsos pretórios.

Para dourar estas tardes amigas, algumas madeleines regadas a café, que ninguém é inteiramente de ferro.

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