Caro amigo ateu,
Em primeiro lugar, te escrevo sem nenhuma pretensão de modificar tua opinião sobre a qual tenho profundo respeito. Apenas gostaria de estabelecer com essas palavras um diálogo franco que nos levasse a enfrentar o debate sobre ateísmo, e desta forma ser possível trabalhá-lo com o devido zelo.
Pois bem, sabe-se que a tradução livre da palavra ateu é expressa pela negação total de Deus. No sentido primário da totalização da verdade. Nesses termos, é improvável ao ateu associar à dimensão divina aquilo que é inalcançável ou simplesmente imensurável, lugar onde a razão assume a primazia da verdade. Aqui está o nó explicativo inserido na própria noção do ateísmo. Ora, para exercer sua descrença em um deus, o ateu precisa antes de tudo crer. Crer naquilo que não deixa de existir, porém é simplesmente negado. Tal objeto negado assume paradoxalmente uma existência sublimada.
Talvez a palavra “crer” seja para nós a melhor aproximação para o contexto acima. Esse verbo intransitivo é na tradução latina a expressão do “imaginar a existência de algo ainda não visto.” Ou seja, dar crédito à existência de algo ou alguém sem a necessidade de uma prova antecipada. Como bem afirma Gianni Vattimo em sua obra Depois da Cristandade – por um cristianismo não religioso “crer é sempre ter fé em alguma coisa com certa margem de dúvidas.” Portanto, a incerteza é a última ratio de quem crê, e paradoxalmente a primeira de quem não crê.
Meu caro, foi exatamente essa margem de dúvida que levou o apóstolo Thomé a condicionar a materialização da sua crença na ressurreição do seu mestre ao dizer: “preciso ver para crer.” Na verdade, Thomé já havia crido, apenas precisava de um elemento material para expressar sua razão. Qual elemento é este? Quem nos ajuda a compreender essa dimensão é o doutor em teologia pela Universität Münster Júnior Aquino, que por sinal é padre e nosso colega professor. Para ele, tal elemento em discussão passa pela noção da prática. Em seu texto, intitulado Fé e Praxis publicado pela Enciclopédia Digital Teológica Latino Americana, Júnior Aquino sustenta a tese de que “a prática já é por si só um elemento da fé, pois a práxis é a própria expressão da totalidade da vida.” Por que? Porque a um só tempo absorve “o intelecto, o sentimento e a volição.” Aqui o autor sustentará que a atividade de “crer é colocar-se a caminhar.” Logo, quando o apóstolo foi ao encontro do seu mestre para crer, se pôs em profundo movimento o que lhe possibilitou alcançar o elemento material possibilitado pela visão.
Ora, meu amigo! Nesse sentido, o elemento da prática assume a excelência da razão porque essa é a principal característica do movimento humano. Assim, fé, prática e razão tecem a teia de uma mesma expressão social. Em termos jocosos, não é possível esperar que uma vaca manifeste sua fé. Ou uma cadela possa exercer o múnus da crença pela própria limitação de sua condição que não sendo humana, não pode apelar à razão para pôr em prática sua fé.
De fato, o que pode ser posto em questão é uma profunda confusão com laivos de dogma moderno, a partir do anúncio da “morte de Deus” feito por Nietzsche. Naquele contexto o famoso filósofo sustentava sua teoria tendo como objeto o deus que a metafísica não conseguiu alcançar. Na verdade, ao anunciar a morte deste deus, o que pretensamente passaria a legitimar o ateísmo moderno, Nietzsche se referia apenas à ideia de absoluto enquanto “fundamento definitivo” (Vattimo, 2004:9). Dito com outras palavras, o esforço do nosso pensador nada mais era que reconhecer que Deus estaria em pleno movimento. Se ele estiver correto, correta está a negação de um deus estático, frio e sem evolução. Óbvio que nesse limite Nietzsche questiona a dimensão humana moderna pautada no individualismo liberal. Razão pela qual é preciso superar tal conceito para descer à raiz da totalidade que Nietzsche parece ter desistido de encontrar.
Nesse contexto, meu caro amigo, é Manfredo Oliveira quem melhor poderia nos ajudar a compreender o ateísmo moderno, justamente quando ele sustenta que no contexto atual “deus se tornou inútil porque as grandes preocupações da vida já foram estabelecidas pela modernidade.” Logo, a expectativa cognitiva de esperar algo é prontamente substituída por uma sensação fugaz assentada no consumismo imediato. Para que a noção do sagrado atribuída às dimensões essenciais como morte e a vida, se a vida é determinada pelo acesso ao crédito? O autor não fala, mas deixa nas entrelinhas que a função do cartão de crédito quase substitui às funções do absoluto. Esse limite encontra a individualização total buscada pela civilização ocidental. De outra parte, igualmente para responder a essa dimensão opressora, encontra-se o ateísmo, que nas palavras de Manfredo, é prático. Este, por sua vez, se contrapondo ao consumismo desenfreado, questiona o deus do mercado como forma de atribuir sua contraposição social. Na verdade, esse ateu prático não chega a propor nada de diferente daquilo já denunciado na porta de entrada casa de Nietzsche: “deus morreu.” Somente aqui poderia haver algum sentido no modelo de vida que você resolveu levar para fugir das instituições que pautam o deus da modernidade.
É nesse limite que regresso a Vattimo (2004:10) para constatar que a morte de deus, enquanto totalidade estática da verdade, abre espaço para pensar a sociedade com base no humanismo, de tal modo a permitir que esta cultura solta-se das amarras da definição divina estática, paralisada em dogmas impostos por pretensos procuradores da fé. Fora disso foi possível questionar a própria noção de mudança social advinda do “triunfo da tecnologia”. Novamente! Esse tipo de ateísmo nada mais é como uma maneira de se opor ao individualismo consumista apresentado pela modernidade.
Meu amigo, aqui está o centro do meu argumento. Isso porque se a própria noção de Deus assumiria novos contornos, somente a prática e a razão poderiam simbolizar uma certa racionalidade secular capaz de evitar a evolução divina com a sua própria negação. Portanto, do ponto de vista racional negar a Deus não poderia ser possível, tendo em vista que a prática da ação humana – a própria crença em movimento – seria atributo da própria fé. O que jogaria na lata do lixo da história qualquer pretensão ateísta.
Finamente, nestes termos, Deus nunca poderia ter morrido, quem morreu foi uma noção dogmática de deus paralisado. Em outras palavras, a morte anunciada de deus correspondia na justa medida ao deus elaborado pela metafísica. Construído com certo grau de preciosismo pela escolástica, mas não mais suportado pela pós-modernidade. Tal definição só foi possível de ser alcançada graças à razão impressa pela fé que estando em movimento assumiria novas verdades, para a partir de então se permitir ao novo.
Caro amigo ateu, no momento essas são as minhas primeiras aproximações sobre o ateísmo. Não estão acabadas, nem poderiam, se nem mesmo Deus o está?! No entanto, minha hipótese é que você, se for ateu, “é graças a Deus.”
Rafael dos Santos da Silva
Fortaleza, maio de 2022
Respostas de 2
Estimado Rafael Silva,
Mes félicitations!
Teu texto, escrito com grande domínio da palavra, expressa uma reflexão valiosa, traduzindo — como eu não poderia — ideias que vagueiam em mim, pesquisador que crê, mas não alcança (ainda) disso falar em meus estudos com a abordagem Histórias de Vida em Formação. Quem sabe te lendo mais, eu chegue lá.
Abraço fraterno,
com fé em Deus, na Arte e na Ciência!
Henrique S. Beltrão de Castro
Poeta, radialista e professor da UFC
Tenho a honra de dizer que esse cara foi meu professor