A beleza talvez seja a maior de todas as conquistas inúteis, a maior delas porque é passageira e necessita de uma ideia de beleza que está sempre atrelada a uma imposição de modelo. São os olhos, o rosto, os cabelos, o corpo, sempre os elementos externos prevalecem sobre a personalidade ou a inteligência.
Artistas, figuras públicas de um modo geral, são enquadrados em padrões para que os produtos criados em torno daquela construção possam ser comercializados no maior número de produtos possíveis. Então, esse comércio é fruto da exploração de um tempo e corresponde a tudo que condiciona a beleza à existência daquilo que a sustenta.
A imagem sempre foi a mais atrativa das percepções sensoriais. Por isso, o padrão imposto à sociedade nos levou a uma busca desenfreada pela perfeição. O equívoco desta visão hedonista que está no substrato do mundo capitalista ignora os outros padrões de bases culturais distintas e antagônicas. Um belo edifício projetado arquitetonicamente para ser um desvio das formas naturais pode causar estesia, choque ou violentar. Em qualquer caso, a unicidade do objeto estético, mesmo que fira um padrão em nome de uma beleza insuperável, inaugura o comportamento do engenho humano.
Nas culturas espiritualizadas ou integradas à natureza o belo é o que se percebe e agrada aos sentidos. Êxtase que está no plano da harmonia entre o prazer e a saciedade. E podem ter a mediação da religião, do contato tátil com a natureza ou da percepção cognitiva da contemplação. Assim, o que pode ser comercializado como suporte para a beleza ocupa um lugar de culto, dissolvendo a aura (de que fala Benjamin) e transferindo para a moda, o espetáculo e a série a ideia de originalidade e atualização dos sentidos. Não é à toa que o espetáculo se utilize de tudo que lance apelo aos sentidos para impedir uma reflexão sobre a arte.
A música é mais extraordinária que a imagem. Porque dela pode se criar a estesia pela audição e pela produção de imagens mentais associadas à sonoridade ou às palavras harmonizadas em letras-poemas ou simplesmente revelar histórias cantadas como encantamento. Geralmente, o encantamento surge na infância, quando a explosão de hormônios vai alterando a percepção e o comportamento humano. Os cheiros, os sabores, os sons, as imagens e as sensações táteis vão elaborando um conhecimento sensorial que será aperfeiçoado por outros conhecimentos adquiridos ao longo da vida, na aprendizagem do racional como elemento cultural distintivo de povos e de indivíduos como artistas, cientistas e pensadores são capazes de produzir a interação entre os sentidos e o racionalizado através de conhecimento elaborado.
Por que os artistas criaram as formas alternativas do real? Por que os filósofos pensaram os conceitos das formas? Por que os cientistas testaram os conceitos das formas? Por que aprendemos e formamos opiniões agregando formas e conteúdos às intuições que nos surgem com as alterações biológicas do corpo e da mente? As respostas talvez estejam na arte; no seu poder transcendental de recriar; no seu alcance além do tempo e do espaço; na sua permanência como registro humano, violando as leis da natureza e das formas, no sentido de agregar novos conhecimentos.
Dito isto, de forma tão incisivamente reativa num mundo cada vez mais repetitivo, volto meu olhar para uma cantora que conseguiu manter a sua imagem como elemento encantatório da sua música. Associada à sua imagem, sua voz se destaca pela harmonia, pelo equilíbrio melódico e pela expressão compósita de acordo com as temáticas das letras, em sua maioria, tratando de amor, saudade e relacionamento. Todas as composições de Françoise Hardy partem do mesmo lugar e voltam para o mesmo conceito. A juventude com sua beleza, a vivacidade, a pulsão de vida presentes na energia que as imagens da cantora invocam dão a ideia de permanência e criam uma espécie de fluxo contínuo de visita ao passado, na medida em que o passado se distancia e deixa para trás a beleza física que o tempo vai desmontando. Como é de se esperar, a pele enruga, o corpo perde equilíbrio, os cabelos embranquecem, a voz vai perdendo potência e a aparência quase sempre revela o tempo de cada um. Françoise Hardy foi musa das décadas de 60 e 70, ditando comportamentos e inaugurando um padrão de beleza onde a mulher era magra e tinha no rosto o seu maior trunfo.
Com o poder encantatório da sua música aprendemos que as letras invocam um tom reflexivo, como se representassem um apelo. Ou talvez uma melancolia enfeixada numa mensagem de esperança, como podemos ver em “La question”, de 1970; ou “Le large”, de 2016, ou ainda “Tant desbelles choses”, músicas que representam uma filosofia de vida onde o tempo é o artífice da nossa personalidade. E o amor é a esperança que quer alcançar a plenitude neste fragmento cósmico de existência. Esse recorte que atravessa décadas revela um princípio e um apogeu da temática existencialista na música de Françoise Hardy.
A seguir, um fragmento da música “Tant des belleschoses” (Tantas coisas lindas):
“…tu as tant de belles choses devant toi…
Tu tens tantas coisas lindas pela frente…
même si je veille d’une autre rive
mesmo se eu estiver na outra margem do rio
quoi que tu fasses, quoi qu’il t’arrive
o que quiseres fazer, o que quer que aconteça contigo
je serai avec toi comme autrefois…
Eu estarei contigo como antes …
même si tu pars à la dérive
mesmo se tu ficares à deriva
l’état de grâce, les forces vives
o estado de graça, as forças vivas
reviendront plus vite que tu ne crois…
voltarão mais rápido do que tu pensas…
dans l’espace qui lie ciel et terre
no espaço que liga o céu e a terra
se cache le plus grand des mystères
se esconde o maior de todos os mistérios
comme la brume voilant l’aurore
como a névoa que precede o amanhecer,
il y a tant de belles choses que tu ignores
há tantas coisas bonitas que tu ignoras
la foi qui abat les montagnes
a fé que derruba montanhas
la source blanche dans ton âme
a fonte branca em tua alma
penses-y quand tu t’endors
pense nisso quando adormeceres
l’amour est plus fort que la mort…
O amor é mais forte que a morte …
dans le temps qui lie ciel et terre
no tempo que liga o céu e a terra
se cache le plus beau des mystères
se esconde o mais lindo mistério
penses-y quand tu t’endors
pense nisso quando adormeceres
l’amour est plus fort que la mort.”
O amor é mais forte que a morte.
(Tradução livre do autor)
Eis as imagens que dialogam com Guimarães Rosa (será que ela leu?), Shakespeare, Perrault, Rilke… é possível estabelecermos um diálogo intertextual dialogicizado em percepções de uma vida pautada no amor, no tempo de amar e no ato de refletir sobre as “Tantas coisas lindas” da nossa existência.