“A primeira lei da economia é a escassez; e a primeira lei da política é ignorar a primeira lei da economia.”
Thomas Sowell
No último dia 18 de janeiro, Lula concedeu a primeira entrevista dele como Presidente a uma jornalista da globonews. Em linhas gerais podemos dizer que se trata de um manifesto de boas intenções que esbarram na realidade cruel de um modelo de relação social que contraria as suas falas de político hábil que aderiu ao servilismo capitalista da social-democracia e é por ela apoiado.
Lula é confiável ao sistema e foi por isso que o trouxeram à luz da democracia burguesa como concorrente capaz de derrotar o fascismo golpista militarista que campeia aqui e mundo afora.
Boçalnaro o ignaro, mostrou-se como tal; planejou mal o autogolpe fascista sem compreender que a elite brasileira quer o poder econômico e político sob suas mãos e não quer dividi-lo com aventureiros de baixa patente militar aspirante primário à líder carismático totalitário.
Os membros da elite política encastelada nas instituições brasileiras, e a elite econômica com o poderio do capital concentrado, e ainda ajudados pela classe média alta que mantém seus privilégios pagando mal aos trabalhadores de baixa renda num país de gigantescos e abismais desníveis sociais, não precisa de Mussolinis, Hitlers, Hugos Chaves, Alfredos Stroessners, Antonios Salazares e Generalíssimos Franciscos Francos.
No Brasil eles são muitos e sabem voar (contrariando a letra da música Pavão Mysteriozo, de Ednardo); não precisam de quem lhes queira usurpar o poder. Lula os representa melhor do que lhes podem fazer os Generais e os aspirantes primários e aventureiros eleitorais genocidas.
Mas analisemos, sob o prisma da conjuntura internacional o teor da entrevista bem-intencionada de Lula, mas que esbarra numa realidade de depressão capitalista na qual a direita e a esquerda se digladiam na disputa pelo poder político decrépito diante da insatisfação popular sem direção revolucionária emancipatória que aponte para a superação da causa dos problemas: o modo de relação social colapsado.
Os dois projetos são como cegos batendo numa mesma porta emperrada. Tudo se assemelha a uma situação na qual um pai que quer dar ao seu filho o presente de Papai Noel propagandeado e desejado, mas impossível de ser comprado por falta de dinheiro.
Sobre o fracasso da tentativa de golpe institucional – Lula – “o golpe não vingou porque eles perceberam que houve uma reação imediatamente. Eu sou agradecido aos governadores que vieram a Brasília prestar solidariedade. Imediatamente a gente se juntou e a gente percebeu que tínhamos que trabalhar juntos – Legislativo, Executivo e Judiciário. É nós, então nos juntamos para garantir a democracia brasileira.”
Golpe institucional no Brasil não funciona com ocupação de prédios vazios num domingo, com gente quebrando tudo.
Não são as paredes e gabinetes vazios que representam o poder político, mas a voz e o comando das pessoas dos representantes empossados em cada uma das estruturas dos três poderes institucionalmente constituídos; do apoio militar; e da adesão dos segmentos expressivos da sociedade civil organizada.
Golpismo tresloucado de vândalos não vigora nem no Brasil, nem nos Estados Unidos, e nem em nenhum país minimamente importante e estruturado. Os golpistas daqui são tão primários como os que invadiram um Capitólio vazio depois de uma derrota eleitoral que afirmam haver sido fraudada. Trata-se de um fenômeno com identidade histórica no espaço e no tempo.
Num país como o Brasil, com expressão territorial continental;
– economia que se situa entre as 12 maiores do mundo, e que já figurou entre a 6ª e a 8ª (ainda que com renda per capita muito baixa e ainda concentrada);
– Detentor de grandes riquezas materiais (somos o segundo maior produtor mundial de alimentos e fornecedor de minério de ferro que toca a indústria chinesa de manufaturados pesados, ainda que isso não represente valor agregado de maior monta);
– que paga juros de 10% ao ano que soma seis a oito centenas de bilhões de dólares sacrificando o povo brasileiro no atendimento de suas demandas sociais (aliás o Lula falou nisso na entrevista, mas vai continuar pagando, senão o Joe Biden e similares não o recebem);
– população de 215 milhões de habitantes;
– detentor da maior floresta tropical do mundo;
– e um sistema bancário concentrado em poucos bancos que auferem lucros consideráveis;
– que remunera bem o capital internacional aqui instalado ou com importação de mercadorias em vários setores da economia (automóveis, máquinas pesadas, peças, laboratórios, equipamentos eletrônicos, cadeias de lojas, etc);
E que definitivamente não é uma república bananeira, nenhum golpe de Estado vigora a partir de um segmento empresarial e militar residual que manipula energúmenos embandeirados e fanatizados, mesmo que haja alguns dos seus membros pertencentes aos segmentos escolarizados (com alguns profissionais liberais de várias éreas do saber) e fundamentalistas religiosos pentecostais.
Assim, a convergência de apoio institucional e econômico ao governo Lula, em que pese a clara divisão eleitoral brasileira, foi o que decretou a derrota e o fracasso da tentativa de golpe que se iniciou desde o resultado das urnas (e da cantilena sem provas de fraude), foi o que deu substância à posse de Lula e sua permanência obsequiosa a todos os segmentos ora citados.
Os despreparados golpistas de todos os matizes que acreditaram na possibilidade de vitória do golpe, e agiram ou se omitiram em sua defesa, descobriram, hoje, que o Céu com que sonhavam não era perto.
Mas isto não significa que a direita, numerosa, não esteja viva, e que não esteja aguardando uma insatisfação popular e dos segmentos que ora apoiam Lula para assumir o comando político totalitário.
O grande embate político mundial a ser feito hoje, mas que está fora do foco nas discussões acadêmicas, político-institucionais, na imprensa, e até nas redes sociais deve ser de como superar a saturação de um modo de relação social que atingiu o seu limite existencial e clama pela própria superação.
Trazer a discussão inadiável sobre as razões do colapso capitalista num mundo tecnologicamente desenvolvido e que não é capaz de acabar com a fome mundial que cresce, é tema sobre o qual não podemos tergiversar.
Lula sobre as perspectivas de retomada do desenvolvimento econômico como vara de condão para a solução de todos os males do capitalismo – “ o que nós precisamos neste instante é o seguinte: a economia brasileira precisa voltar a crescer e nós precisamos fazer mais política social…
… eu fico irritado às vezes quando se discute muito, qualquer problema se discute estabilidade fiscal, estabilidade fiscal. Ninguém, Natuza, ninguém foi mais responsável do ponto de vista fiscal do que eu…
… o que nós fizemos nesse país? Nós entramos, estabelecemos a meta de inflação de 4,5% e cumprimos. Nós geramos em oito anos quase 14 milhões de empregos. Depois. Com o mandato da Dilma, foram 22 milhões. Nós reduzimos a dívida de 60,5% para 37,7%, e nós fizemos uma reserva que o Brasil nunca tinha tido de 370 bilhões de dólares…
… elas são antagônicas (responsabilidade social e fiscal, pergunta levantada pela entrevistadora) por causa da ganância, sabe, das pessoas mais ricas, ou seja, as pessoas não querem. O empresário não ganha muito dinheiro porque ele trabalhou; ele ganha muito dinheiro porque os trabalhadores dele trabalharam. O que nós queremos é que haja a contrapartida no social… “
Lula, como qualquer político burguês que crê na pujança eterna do capitalismo, quer nos fazer crer que a retomada do desenvolvimento econômico deve ocorrer sob seu governo.
Quer que o trabalhador continue sendo trabalhador e que seja representado por seu partido e sindicato, ou seja, continue sendo explorado, mas de modo mais humanizado, vez que vive da defesa dos seus interesses de classe, e não da sua superação enquanto categoria capitalista primária.
Esquece que foi sob o governo Dilma Rousseff do PT quando começaram a surgir os efeitos deletérios no Brasil daquilo que ele afirmava ser apenas uma marolinha: a grave crise imobiliária dos Estados Unidos que foi socorrida com dinheiro sem valor dos Bancos Centrais de lá e da União Europeia, sob pena de colapso, já ali, de todo o sistema financeiro internacional.
Os efeitos desse fenômeno causado pela bolha imobiliária criada como sintoma da incapacidade de reprodução de valor de modo sustentável na produção de mercadorias vêm sendo sentidos até agora, e agravados pela pandemia do covid19.
Sob Dilma e o PT explodiu a insatisfação popular em 2013 quando um simples protesto contra um aumento de passagens resultou num processo de aglutinação popular violentamente reprimido pela polícia.
Só a duras penas ela conseguiu a reeleição contra o então candidato Aécio Neves, para logo depois sofrer o impeachment parlamentar em maio de 2016 com forte adesão popular manipulada pela direita brasileira, que sempre foi negativamente expressiva e influente na política e na economia, infelizmente.
Lula fala dos números do seu governo como se o PT sob sua orientação desde sempre não tivesse nenhuma responsabilidade na crise então instalada, ocasionada pela depressão capitalista dos últimos dez anos, como resultado do tsunami que vem se abatendo sobre o mundo.
Lula avaliou mal a crise que se instalou desde 2008/2009, e que vem se intensificando, e o Brasil, como periferia econômica de pouca expressão em relação aos países que detêm hegemonia econômica (moeda forte aceita mundialmente; altos valores de seus PIBs; e endividamentos estratosféricos, acima dos PIBs anuais, mas com juros baixíssimos ou até negativos), sofre mais intensamente as consequências desta conjuntura.
Analisemos, pois, os números destes dez últimos anos no Brasil (2013 a 2022), sob os governos de Dilma Rousseff, Michel Temer, e Jair Bolsonaro.
Dilma Roussef 2013 – 2014 – 2015
PIB …………….. 3,0% – 0,5% – 3,5% = média de 2,33%
Inflação………… 5,09 – 6,4% – 10,67% = média de 7,37%
Desemprego …. 7,1% – 4,8% – 8,7% = média de 6,86%
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Michel Temer 2016 – 2017 – 2018
PIB ……………. 3,0% – 1,3% – 1,3% = média de 1,8%
Inflação ………. 6,29% – 2,95% – 3,75% = média de 4,33%
Desemprego …. 10,9% – 12,7% – 11,96% = média de 11,96%
Jair Bolsonaro 2019 – 2020 – 2021 – 2022
PIB …………. 1,1% – -3,3% – 4,6% – 2,6% = média 2,5%
Inflação ‘…… 4,31% – 4,52% – 10.6% – 5,79% = média 6,3%
Desemprego .. 11,9% – 13,5% – 13,2% – 8,7% = média 11,82%
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Como se vê, no Brasil dos últimos dez anos, vêm se acelerando os processos de PIBs anuais baixos com inflação e taxas de desempregos crescentes em governos dos mais variados perfis ideológicos, numa prova inconteste de que a economia capitalista num processo autodestrutivo de sua própria forma de mediação social, é aquilo que se apresenta para a ordem política ditatorialmente sem que esta última possa influir substancialmente na correção de rumos.
O capital, na era da terceira revolução industrial graças ao advento e introdução da microeletrônica no processo de produção social (mercadorias e serviços) tornou o trabalho abstrato produtor de valor dispensável em maior proporção do que os novos nichos de trabalho criado reduzindo a massa global de valor produzido (razão da emissão estatal de moeda sem valor, inflacionária), e agora atingiu o seu limite interno de expansão, representando o fim de um ciclo cruel escravista e segregacionista havido desde o seu nascimento, com desenvolvimento aprimorado de sua vida, e que agora atinge o estágio de morte por um processo de autodestruição da própria forma, mas sem querer largar o osso…
Ou superamos o capital ou sucumbimos com ele: eis a questão!
O governo Lula admite, claramente, na sua entrevista, que pode provocar a retomada do desenvolvimento econômico sob tal quadro, como se a política fosse soberana em relação à economia e indutora de uma correção de rumos capaz de resolver todos os problemas decorrentes da contradição capitalista irracional e do seu fim irremediável.
O governante, tal qual um surfista numa onda, apenas tenta se manter de pé equilibrado para chegar à praia, que é para ele a governabilidade sob parâmetros previamente estabelecidos que ele não pode alterar. Esta é a identidade mais definida do reformismo social-democrata, corrente à qual pertence ao trabalhismo lulista.
Lula sempre teve a simpatia dos militares, desde o seu surgimento quando a ditadura na fase final sentiu faltar terra sob seus pés (os militares sempre tutelaram politicamente a República deste país, mas com a economia fraquejando foi melhor entregar provisoriamente o comando político aos civis), porque em tempos de vacas magras é melhor ter alguém confiável ao sistema do que ter uma onda revolucionária de verdade.
Entretanto, a obsolescência do capitalismo e sua crise interna, endógena, representada pela incapacidade de sua reprodução no nível exigido pela economia burguesa e sua lógica contraditória; e sua crise externa, exógena, provocada pelo aquecimento global impossível de ser contido sob a égide irracional do capital, está a exigir uma reestruturação do modo social de produção superando o valor, a forma-mercadoria, o trabalho abstrato, os partidos burgueses, o trabalhador e seu partido, o Estado vertical, o mercado, e demais categorias que se criaram por séculos no seu entorno como estrutura de preservação e dominação social.
Nada mais revelador do reformismo bem-intencionado, contraditório e ineficaz do que a entrevista de Lula.