Em se falando sobre a América Latina, toda e qualquer reflexão que sejamos levados a fazer para entender e explicar este enigma indecifrável é possível e justificável.
Não será necessário recorrer aos intérpretes comissionados da pedagogia da libertação para ter-se uma explicação compreensiva sobre os desvios da colonização e do colonizador por estas terras achadas a mando de Sua Majestade. E para reconhecermos a sua perversidade na realização da obra de espoliação destruidora do que encontraram à sua frente na sua inominável guerra de conquista.
O mais trágico não foi o que destruíram, nestas terras tão distantes da sua civilização, ao desembarcarem montados em seus cavalos alados — velhas civilizações autóctones, culturas esmagadas sob as suas botas e diante das imposições irredutíveis da fé.
O mais trágico foi o que criaram à sua passagem, com a sua cupidez, sob o domínio da vocação desenfreada para a riqueza e o poder. A marca desta penetração selvagem ficou presente na exaustão das riquezas do solo nas gerais, no controle estrito do poder na ampliação da presença das nações conquistadoras pelos Andes, na demarcação de direitos em um modelo de dependência que daria lugar à perpetuação das fontes autoritárias do poder por toda a região.
O poder absoluto surgiu na Europa como forma de consolidação das dinastias e das hordas conquistadoras dos bárbaros vindos dos confins da terra e dos tempos.
Na América, dita latina, os conquistadores vestiram as sotainas e dominaram os autóctones pelas armas, sequer se deram ao esforço de dar forma aos instrumentos do poder e do governo. Espanhóis e portugueses tiveram a posse das terras por descobrir por uma bula papal que dividia o mundo desconhecido pelas duas nações católicas mais poderosas daqueles tempos.
Construíram-se, assim, nesta parte do hemisfério “democracias instáveis” e “ditaduras estáveis”, como as viu Lipset, em contraposição às “democracias estáveis” e às “ditaduras instáveis” do Velho Mundo. Abaixo do Rio Grande, fronteira da nova face autoritária do Continente, nada prosperou, senão a intervalos cíclicos, que lembrasse os contornos de um sistema democrático de governo.
Ditaduras foram todos os países, além do Brasil, de colonização peninsular. Ditadores, os donos do poder, áulicos do poderio das nações europeias e repetidores da sua cultura e das suas formas de espoliação centenária.
O modelo de governo democrático e republicano, conhecemo-lo pelos livros e dele construímos variações que têm de tudo menos a força e a vocação para a liberdade. O termo “caudilho” exprime com propriedade o papel do ator central desta forma pouco sutil de tirania. Espelha o “mandonismo” característico das sociedades latino-americanas que ocuparam os espaços criados pelo colonizador no Sul do continente.
No Brasil, como pelo espinhaço inóspito dos Andes, a autoridade carece, desde a fundação do Estado constitucionalmente constituído, da legitimidade que acompanha esta designação. O coronelismo e a caudilhagem, símbolos do poder político, são uma projeção das oligarquias, da natureza do “potentado” eminente que controla as instituições, as formas de governo, a estrutura partidária, as forças armadas, o clero e os instrumentos de controle da opinião.
O autoritarismo, na medida justa do seu poder discricionário, chamou-se “Estado Novo”, “bolivarianismo”, “getulismo”, “aprismo”, “peronismo”, “kirschernismo”, “guevarismo”, “castrismo”, “stroessenismo”, vieram os generais, Pinochet, no Chile, Medici, no Brasil…
A democracia “relativa” que estamos prestes a inaugurar é a parte exposta do iceberg totalitário que modelará a concepção de democracia na América Latina. É um longo ciclo imprevisível cuja duração excede a escala das medidas dos sistemas autoritários convencionais.