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A usurpação dos símbolos

Volto, oito meses no tempo, e posso ver a tremular, tangida pelo bafo quente da brisa de Brasília, a bandeira brasileira…. Que bela!… E que triste!… Bela por suas cores, bela por nos afetar pertencimento pátrio…. Abro aspas para Fernando Pessoa:
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”

Bem sei que existem bandeiras mais bem-apanhadas do que a nossa, mas elas não são o símbolo da nossa aldeia.

E por que triste?… Triste porque estava fora de lugar e de propósito. Para as bandeiras existem os mastros; para as campanhas políticas existem os comitês e as ruas…

Aquele espaço ali é consagrado às colunas de Niemeyer… O IPHAN o sabe bem…. Numa pátria onde se respeitam os ritos e a institucionalidade, nada está fora de lugar. Não se admite o sequestro dos símbolos pátrios nem a usurpação dos edifícios públicos para satisfazer as idiossincrasias e os desideratos políticos de ocasião.

De fato, aquela bandeira ali assumia ares de um ser sequestrado: um pássaro na gaiola, um tigre na jaula, uma criatura vilipendiada… que só nos pode ensejar tristeza e consternação…

Ah, mas você fala tudo isso de um simples pedaço de pano?!… Seria um mero retalho, se não viessem impressas nele as cores que o animam, que dizem sobre um povo. … Por esse raciocínio, a Monalisa seria apenas papel e tinta, um Di Cavalcante, perfurado por “patriotas”, não doeria tanto na nossa alma!…

Assim como o saudoso Gilberto Dimenstein não acreditava em cidadania de papel, também não creio em patriotismo de símbolos.

Ora, estás a sentir um frenesi patriótico? … Ótimo! …. Que tal exercitá-lo nas ruas, com os compatriotas desfavorecidos?… Por que não se voluntariar nas brigadas contra incêndio na floresta?…

Nada é mais absurdamente paradoxal do que paramentar-se com as cores e os motivos da pátria para destruir o patrimônio dela. Também não deixa de ser uma extravagância bestial o uso de uma indumentária nacional para impor-se no território, como cães a mijarem no poste.

De fato, nem sou afeito à heráldica. Mas sei que os símbolos existem para funções específicas… Quanto estudei o Brasão português, foi por força do ofício: precisava entender para explicar a “Mensagem” de Fernando Pessoa… De outro modo, eu não poderia contextualizar esta maravilha:
“Eu, Diogo Cão, navegador deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei
(…)
E ao imenso e possível Oceano
Ensinam estas Quinas que aqui vês
Que o mar com fim é grego ou troiano
O mar sem fim é português…”
(Quem nunca ouviu estes versos, na voz de Caetano, é virgem do sentir-se envolto, numa brisa oceânica, no sopro leve de uma canção).

Por igual motivo, cheguei a decorar o Hino Nacional. Ministrava, à época, um curso de formação de professores…. No caso, professoras…. Eram trinta mulheres, na sala…. Uma delas confessou-me embaraços na compreensão do hino. Diagnostiquei o grupo…. De fato, ninguém sabia de onde vinha “o brado” nem quem o ouvia, tampouco o que retumbava…

Assentimos, então, que eu faria uma análise sintática, estilística e interpretativa desse hermético poema, parnasiano na forma, e romântico no conteúdo…. Aí veio uma profusão de metáforas, metonímias, prosopopeias, hipérbatos, hipérboles…. Ao fim, todas entenderam e ficaram contempladas.

Não deixa de ser irônico um Hino tão rebuscado para um povo tão simples, que o canta, como cantam as seriemas e as saracuras, no brejo…. Canta-se “porque o movimento existe” nos estádios, e os pulmões estão plenos de patriotismo futebolístico!…

Imagino o Duque Estrada, lá no assento Etéreo, onde subiu (como diria Camões). E o velho bardo português piscando para ele (com o olho que lhe resta) a dizer:
“Tu és mesmo um gozador!”
Não há futuro para um país que toma a barbárie, como regra. No auge da campanha eleitoral, recebi de um amigo esta insólita advertência: “Cuidado, Macedo, ao deparar-se com um carro adesivado de verde e amarelo, é prudente manter a distância, pois dali pode pular um fortão, com taco de beisebol, soco inglês ou até arma de fogo…
Pasmo, acudi: – Santo Deus!…. Essas cores tão familiares e inocentes que se prestavam a enfeitar as ruas brasileiras nas copas… Preferidas nas quermesses… nas bandeirinhas do São João!… Agora, tão ameaçadoras!… Quando as cores e os símbolos de um país tornam-se inibitivos, é porque tudo vai mal.
Não deixei de refletir que o feixe de varas, encimado de uma machadinha, na bandeira de Mussolini era, pelo menos, mais explícito.

Os símbolos são achados semióticos essenciais para comunicar interna e externamente uma nação. Portanto a sua apropriação por grupos de indivíduos é uma forma de usurpação.

Quando vejo a o pavilhão nacional sair (do devido mastro) para o lombo de um golpista, vêm-me sempre estes versos de Castro Alves:
“Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!….
E deixa-a transformar-se nessa festa.
Em manto impuro de bacante fria!”

Não chego a generalizar, como o fez Samuel Johnson: “O patriotismo é o último refúgio do canalha.” Mas bem sei que há uma grande canalhice em embrulhar-se na bandeira e cantar o hino, como apito de cachorro, para golpear a democracia.

O Brasil precisa redimir-se, com o mundo, pelas desfeitas, pelas ofensas gratuitas…. Aliás, não sei se Lula já pediu desculpas aos ingleses, mas deveria fazê-lo…

Quem não se lembra, com rubor?!… Trajados em camisas da CBF, com suas bandeiras e bandanas… ufanos, impávidos e ousados…. Lá foram eles assombrar as ruas de Londres, em dia de velório da rainha. E os ingleses, atônitos, com aquela balbúrdia bárbara, não entendiam que raio de Mito se invocava…
A certa altura já não se sabia mais quem pranteava a monarca e quem berrava pelo Mito. Aquilo deve figurar na memória como um desastre brasileiro. A velha Londres elegante, imperial e solene, por um momento, viu-se transformada numa Sucupira (de “O Bem-Amado”). É como se levássemos, para o olho do mundo, as nossas mais extravagantes caricaturas.

Não podemos compreender, senão pela via do nonsense, brasileiros na Inglaterra a recomendar a Venezuela para os ingleses.
E o que dizer das escaramuças, em Aparecida no dia da Padroeira? … E aquela gritaria de mito dentro da Basílica? … E algazarra nas ruas? …
A invasão dos espaços era uma marca. Não havia sacralidade que resistisse…. Transformaram os templos em comitês eleitorais, os púlpitos em palanques eleitorais e os fiéis em pombos-correios em fake News.

O oito de janeiro foi o último estertor do monstro ferido pela democracia. Como disse Guimarães Rosa: “O voto é a voz que vem de cima”.

Diz-se que o Nordeste vota pelo estômago. Se assim o for, salve o estômago nordestino!… ainda que mais não seja… repôs, entre outras coisas, as bandeiras aos mastros.

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