Nasci em 1941, no sítio Latadas, Jaguaruana-Ce. Desde cedo, os vastos campos e o céu aberto do Vale do Jaguaribe foram o meu playground. Mal aprendi a andar, já acompanhava os passos dos meus pais, Afonso e Maria, pelas plantações, pelas lutas do sítio e dos afazeres de casa. Meus irmãos Gilvan, Gilvanise e Gilvanilde, nascidos antes, em anos subsequentes, também participavam das aventuras, das belezas e das durezas da vida rural. Plantar feijão e milho, apanhar algodão nas madrugadas das noites de luar, estender palhas de carnaúba, dar milho às galinhas no terreiro, fazer serão de tranças etc. Os meninos da roça começam a trabalhar cedo, têm contatos intensos com a natureza e aprendem a valorizar os encantos da vida desde pequeninos: o canto dos pássaros, o brilho dos vagalumes, o coaxar dos sapos e a correnteza dos rios que cortam o sertão são lembranças que marcam. Eu, claro, não fui exceção.
Muito cedo, recebi de presente um carneirinho lanzudo que recebeu o nome de Rafle. Ele tinha uma marca peculiar no lombo, uma mancha preta que lembrava uma sela. A partir desse dia, eu e o Rafle nos tornamos amigos inseparáveis. Brincávamos pelos campos, conversávamos e, muitas vezes, dormíamos lado a lado no chão frio dos quartos da nossa casa ou no terreiro, vendo o céu estrelado. Para mim, Rafle era mais que um animal de estimação; era um brinquedo, um mano, um companheiro de todas as horas.
Mas o sertão nordestino também é terra de desafios implacáveis. A seca não tardou a chegar, castigando minha família e o sítio Latadas com sua fúria. As plantações murcharam, os animais definharam e a água tornou-se escassa. A fome começou a rondar o nosso lar e, cada dia que passava, trazia mais desespero. O papai, chefe de família responsável, enfrentava sempre as duras realidades com coragem e determinação; sabia que a sobrevivência saudável de todos era prioridade e estava por um fio.
Em um desses dias sombrios, ele tomou a decisão mais dolorosa de sua vida. Ao entardecer, sentou-se ao lado da mamãe e, em um tom baixo e pesaroso, falou da necessidade de matar o Rafle para alimentar a família. Mamãe imaginou o sofrimento que esse fato me traria mas, com lágrimas nos olhos, concordou. A decisão era extrema, todavia a fome não permitia outra alternativa. Eu, ao ouvir a conversa, fiquei sem chão. Não concebia ser possível o Rafle, indefeso, receber uma machadada na nuca, ser pendurado pelo pé e ser sangrado com uma faca pontiaguda e amolada. Não conseguindo conter as lágrimas, corri para a marizeira, subi e, como de costume, deitei-me num galho grosso horizontal e fiquei chorando lá, sendo consolado pelos alarido dos pássaros que se aninhavam para dormir.
A noite foi longa pra mim. Ouvi o agouro de uma coruja que não parou a noite inteira. Meu coração acelerou ao ouvir o canto do galo na madrugada, sinal do amanhecer do dia. A hora de o sol nascer aproximava-se e a vida do Rafle encurtava velozmente. Só faltava ouvir o papai pigarrear e escutar o chiado dos seus passos rápidos para entrar em ação. Vi sua sombra passando pela porta, puxando meu amiguinho pelo cabresto para o destino final. Não sei quem estava mais triste: o papai, o Rafle ou eu. O assassinato foi cometido; missão brutal, porém necessária, eu até entendia. O Rafle, que sempre amanhecia alegre, cheio de vida, berrando, escaramuçando às vezes, naquele dia, parecendo adivinhar o que iria acontecer, amanheceu silencioso e triste. Abracei-o com carinho e enxuguei minhas lágrimas na lã do seu pescoço. Que lúgubre, adeus macabro e cheio de sofrimento, imaginei! Poucos momentos depois, de longe, com o canto do olho, vi o Rafle imóvel, pendurado pelo pé no caibro do alpendre, com a boca entreaberta e sem brilho nos olhos. Ao meio dia, a família reuniu-se em torno da mesa da sala para almoçar. Na minha imaginação, cada um exibia uma expressão de tristeza. Eu não consegui comer. A dor que sentia era maior do que a fome. Preferi retirar-me e, debaixo de uma oiticica, chorar copiosamente, abraçado ao vazio deixado pelo Rafle.
Os anos se passaram e a memória dele permanece na minha mente. Cresci, tornei-me homem trabalhador e resiliente, mas nunca esqueci o amigo que perdi naquela fatídica manhã, quando criança. Sim, cuidemos das crianças, elas são sensíveis, puras e frágeis! O sacrifício do Rafle tornou-se uma lembrança indelével, um símbolo da luta e da perseverança em meio às adversidades. Até hoje, quando olho para o céu estrelado do Ceará, nas noites escuras do verão e, sinto o vento Aracati acariciando meu corpo, lembro da presença do Rafle ao meu lado, comendo milho na palma da minha mão. E ainda sinto aquela dor!
[10:58, 02/06/2024] Gilmar Oliveira: