A desigualdade, a democracia, o capitalismo e a coesão social III, por Osvaldo Euclides

A liberdade e a prosperidade são os dois valores que se colocam como absolutos para explicar e justificar a escolha que a humanidade fez de forma quase unânime nos últimos duzentos e poucos anos pela democracia e pelo capitalismo. De fato, a política, como espaço do jogo do poder, e a economia, como espaço do jogo do dinheiro, entregaram uma boa dose de liberdade e prosperidade no período considerado, e isso não é pouca coisa. Os resultados dos últimos dois séculos e meio são quantitativa e qualitativamente melhores do que os dez mil anos que antecederam essas duas opções.

Quanto à liberdade, quase não há ressalvas, a democracia cumpriu bem o seu papel, embora haja um enorme espaço para aperfeiçoamento. Afinal, o sistema representativo tem falhas e sofre muitas manipulações, além de ter se permitido uma dominação decisiva pelo jogo do dinheiro, a ponto de se considerar que os governos foram apropriados pelos “mercados” (e aqui a palavra se aplica mais ao mercado financeiro).

Quanto à prosperidade, o modelo é profundamente desequilibrado. Que o modelo gera riqueza não há dúvida. O problema é outro. A riqueza se concentra em excesso, a pobreza anda de lado, pouco ou nada avança. Enquanto havia entusiasmo e esperança, que vinham junto com o crescimento econômico, essa questão se diluía nas explicações de que “primeiro o bolo cresce, depois é que se divide” ou “o sistema está em processo de investimento, precisa esperar”. Quando as crises se alongam e se tornam agudas (e o entusiasmo e a esperança minguam), o drama da injustiça social vira ameaça, pois o sistema perde a confiança que o legitima.

Os olhos mais críticos e que conseguem furar o bloqueio da opinião publicada apontam algumas deformações:

  1. o mercado financeiro movimenta mais de 50 vezes o valor da economia real;
  2. a riqueza gera riqueza, agora sem riscos, no mercado financeiro;
  3. o mercado financeiro e sua lógica poderosíssima dominaram e paralisaram os governos.

Traduzindo os três.

A quantidade de recursos que o mercado financeiro movimenta diariamente perdeu qualquer vínculo com a realidade, com a produção, com a lógica que fundou o capitalismo (o sistema aloca os recursos racionalmente, de forma a aumentar e melhorar a produção, os riscos justificam os lucros, a poupança de uns financia a produção de outros, o sistema bancário apenas faz a intermediação…). A lógica foi rompida com a desproporção mercado financeiro x PIB. O “mercado” agora alimenta-se de si próprio, a nuvem de dinheiro busca apenas oportunidades no próprio mercado de dinheiro.

A riqueza conquistava sua legimitimidade pelo ato que a gerava: o risco justificava o retorno, o mérito e a iniciativa tornavam aceitáveis as diferenças de riqueza de qualquer tamanho. Isso não há mais. O produtor, o empreendedor estão perdendo dimensão econômica e política (só o dinheiro fala). Agora, o dinheiro gera dinheiro no mercado financeiro, sem risco, sem qualquer ganho econômico ou social.

O poder público costumava agir como moderador, fornecendo mesmo ao mais selvagem capitalismo uma função social, uma legitimidade indispensável. E assim agia operando os mecanismos de intervenção na economia (políticas fiscal, monetária e cambial). De certa forma, dois movimentos se encontraram no meio do caminho: o Estado foi se demitindo de suas funções e o mercado foi assumindo o controle do Estado (afinal, basta controlar a taxa de câmbio e de juros e influir na política fiscal para dominar um país).

Como se vê acima, os fatos imbricam governo, mercado financeiro, desigualdade e legitimidade do sistema. Vai ser preciso mexer nesses elementos, isso já se sabe, até a assembleia dos ratos já sabe. A questão é: quem vai botar o guizo no pescoço do gato?

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