100 ANOS DO CINEMA E DO AUDIOVISUAL CEARENSE – PARTE II* Por Duarte Dias

Na primeira parte deste artigo, abordamos a importância das efemérides para a reflexão sobre nossos valores culturais. Agora, aprofundaremos um aspecto essencial para entender o cinema e o audiovisual cearense: a atividade de exibição.

Antes mesmo da produção de filmes locais, como os do pioneiro Adhemar Bezerra de Albuquerque, o Ceará já respirava o fascínio das imagens em movimento por meio das primeiras exibições no estado. O marco inicial dessa trajetória foi em 19 de setembro de 1897, com a primeira exibição cinematográfica registrada em Fortaleza, realizada em um teatro de 500 lugares localizado na Rua Senador Pompeu. Promovido pelo artista itinerante Ernesto de Sá Acton, em parceria com o empresário cearense Antônio Ferreira Braga, o evento destacava o “Kinetoscópio de Edison”, marcando o início de uma nova era cultural no Ceará.

Com uma população de cerca de 40 mil habitantes na época, Fortaleza testemunhou, nestas primeiras sessões de cinema, geralmente realizadas em teatros e cafés, o embrião de uma cultura cinematográfica mais estruturada, tendência que se fortaleceu no início do século XX, com a chegada de exibidores como o italiano Vittorio Di Maio, que, em 1907, realizou uma temporada de sucesso no Teatro João Caetano, localizado na esquina da rua Liberato Barroso com rua Senador Pompeu.

Encantado com o público e a cidade, Di Maio, após uma temporada em Paris, prometeu em carta ao Jornal do Ceará criar uma sala fixa de cinema em Fortaleza. Cumprindo sua promessa, ele inaugurou em 26 de agosto de 1908 o Cinematographo Art-Nouveau, localizado na esquina da Rua Major Facundo com rua Guilherme Rocha. Considerado a primeira sala fixa de cinema do estado, o espaço oferecia uma programação diversificada, que mesclava apresentações cinematográficas com espetáculos de variedades e teatro, refletindo as preferências culturais da época.

A inauguração do Cinematographo Art-Nouveau – ou Cinema Di Maio, como também ficou conhecido –marcou uma transição significativa na vida cultural de Fortaleza, consolidando o cinema como parte essencial do cotidiano da cidade; a atividade de exibição passou de esporádica para constante, o que permitiu o aumento do público e o posterior desenvolvimento de um mercado cinematográfico, visto que, inspirados pelo sucesso inicial alcançado pelo italiano Di Maio, vários empreendedores cearenses passaram a ver nas salas fixas de cinema um negócio promissor.

Um desses empreendedores foi Luiz Severiano Ribeiro, nome que se tornaria sinônimo de exibição cinematográfica não apenas no Ceará, mas em todo o Brasil.

Nascido em 1885, na cidade de Baturité, Luiz Severiano Ribeiro, após ter atuado em uma sociedade anterior, iniciou sua carreira como empresário individual em Fortaleza com a abertura da Casa Ribeiro, uma sofisticada loja localizada na rua Major Facundo, em frente à Praça do Ferreira. Percebendo, como alguns de seus pares, o potencial do cinema como entretenimento de massa, Severiano inaugurou, em dezembro de 1915, em sociedade com Alfredo Salgado, o Cinema Riche, localizado justamente no antigo prédio do cinema de Di Maio, que havia se retirado de Fortaleza no ano anterior.

A partir desse momento, demonstrando resiliência e perspicácia empresarial, Luiz Severiano Ribeiro, com uma abordagem agressiva, mas, ao mesmo tempo, colaborativa e inovadora, conseguiu estabelecer uma rede sólida e eficiente de salas de cinema que, tendo Fortaleza como ponto de partida, expandiu-se pelas regiões Norte, Nordeste e Sudeste do país, consagrando o Grupo Severiano Ribeiro, ainda na primeira metade do século XX, como o maior grupo empresarial do circuito exibidor brasileiro.

Percebe-se, pela cronologia e importância dos acontecimentos, que a atividade de exibição como base da expansão e crescimento do cinema cearense não pode ser subestimada, dado que foi por meio desse circuito exibidor que o público local desenvolveu o gosto e o interesse pela sétima arte, pavimentando o caminho para o surgimento de produções próprias e a criação de uma identidade cinematográfica cearense.

Considere-se ainda que todo esse movimento em torno da atividade de exibição não estava restrito a Fortaleza: F. da Silva Nobre, em sua obra “O Ceará e o Cinema”, nos informa que, em 1950, 33 municípios do interior cearense se encontravam inseridos no circuito exibidor, que contava então com mais de 60 salas de exibição cinematográfica.

Esses espaços de exibição, anteriores a chegada da televisão no Ceará – fato que só aconteceria em novembro de 1960 – funcionaram como verdadeiras escolas, tanto para a formação de público quanto de futuros profissionais, estimulando o aprendizado, o debate, a criatividade e o empreendedorismo que marcariam o audiovisual cearense ao longo das décadas.

Além disso, essas salas de cinema desempenharam um papel fundamental como espaços de convivência e interação social, contribuindo para a dinamização da vida urbana e para a construção de uma cultura compartilhada. No caso de Fortaleza, a Praça do Ferreira, com seus cinemas e cafés, tornou-se um verdadeiro epicentro cultural, onde diferentes classes sociais se encontravam e compartilhavam experiências e emoções proporcionadas pela sétima arte.

É importante ainda ressaltar que a atividade de exibição cinematográfica também teve um impacto significativo na economia do estado, gerando empregos e movimentando diversos setores, desde a construção civil até a publicidade e o comércio; o sucesso dos cinemas impulsionou, particularmente após a Primeira Guerra Mundial, o desenvolvimento urbano e de costumes, contribuindo para a modernização da cidade ao tempo em que reforçava o papel do cinema não apenas como forma de entretenimento, mas também como motor de progresso social, cultural e econômico.

Graças ao trabalho e à visão de várias gerações de empreendedores e exibidores – como Ernesto de Sá Acton, Manuel Pereira dos Santos (Mané Coco), Vittorio Di Maio, Roberto Muratori, Henrique Mesiano, Júlio Pinto, José e Joaquim de Oliveira Rola, Luiz Severiano Ribeiro, Clóvis de Araújo Janja e Amadeu Barros Leal, entre outros o Ceará não só pode ingressar e manter-se em contato com o mundo do cinema, mas desenvolver, ao longo do tempo e com o acréscimo de outras iniciativas, as bases para uma rica e diversificada produção audiovisual que hoje é motivo de orgulho e celebração.

Por outro lado, essa grande legião de exibidores, muitos deles anônimos e cada um à sua maneira, enfrentou enormes desafios nesse processo histórico, desde limitações tecnológicas e logísticas até a escassez de recursos e enfrentamento de crises econômicas, produtivas e sociais. No entanto, sua determinação e paixão pelo negócio do cinema deixou um legado duradouro que continua a influenciar e inspirar novas gerações de empreendedores.

Exemplos disso podem ser encontrados no trabalho realizado por Honório Pinheiro, criador do Cine Bom Vizinho, presente em vários municípios do Ceará, e João Soares Neto, proprietário dos Cinemas Benfica. Mais recentemente, destacam-se os jovens Paulo Victor Feitosa, Mardônio Barros e Ingrid Ferreira, responsáveis pela Rede Cine+, que oferece sessões de cinema e ações formativas em seis municípios de dois estados brasileiros, Rio de Janeiro e Ceará, atuando com forte ênfase na cultura, educação, sustentabilidade e promoção do audiovisual brasileiro.

Necessário também o reconhecimento dos esforços do poder público cearense nas últimas décadas, em particular os empenhados pela Secretaria Estadual da Cultura, como sinaliza o Cinema do Dragão, localizado no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e cuja origem, inaugurado que foi em janeiro de 1999 como Espaço Unibanco Dragão do Mar, remete ao trabalho incontornável de outro emérito exibidor brasileiro, Adhemar Oliveira e o São Luiz, legado do pioneiro Luiz Severiano Ribeiro que, inaugurado em março de 1958 como Cine e reinaugurado em maio de 2015 como Cineteatro, se constitui como o último e mais importante representante de uma era de ouro dos cinemas de rua em Fortaleza.

Ao celebrarmos os 100 anos do cinema e do audiovisual cearense, é essencial reconhecermos o legado deixado por todos esses visionários, que não só abriram as portas – e as telas – para a sétima arte, mas também plantaram as sementes de uma indústria que continua a florescer, enriquecendo cultural, social e economicamente o estado.

*Link para o artigo 100 ANOS DO CINEMA E DO AUDIOVISUAL CEARENSE – PARTE I: https://segundaopiniao.jor.br/100-anos-do-cinema-e-do-audiovisual-cearense-parte-i-por-duarte-dias/

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