Viver é perigoso, por Luciano Moreira

A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte – uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.” [Fernando Pessoa ou Bernardo Soares, em Livro do desassossego].

Eu, no extremo da minha simplicidade – ou da singeleza da minha natureza romântico-poética –, procuro conduzir a minha nau por mares bastante navegados – onde o risco é aparentemente menor –, sempre sonhando com o equilíbrio entre a “alma profunda” e a “alma atenta”. Quanto ao mentir, quem de nós tem alguma pedra a atirar?! [Xykolu, em Viver é perigoso].

Eles se conheceram, no frescor ameno de um trivial fim de tarde, num tradicional café parisiense, a folhinha do calendário marcando um dia qualquer da semana.

Dela, após incidental olhar de soslaio, atraíram-no, tão surpreendentemente, apesar da imagem de rara beleza que, de repente, lhe invadira a alma miseravelmente poética:

O negror dos vastos cabelos a escorrer em suaves ondulações, águas de corredeiras, até esparramar-se na foz das largas costas nuas;

O rosto ligeiramente longilíneo, revelando um todo facial harmonicamente encantador, “um desvario cruel da natureza” simplesmente belo;

Os olhos de um verde translúcido de jade, irradiando pureza e serenidade, e, em contraponto, dardejando o olhar selvagem de felídea no cio;

O sorriso de porcelana, aparentemente despretensioso, emoldurado por lábios carnudos, sensuais, e uma quase imperceptível ponta de língua a acariciar, voluptuosamente, uma e outra, as comissuras;

O colo – e que colo! – desprovido de artificialismos (como se precisasse!): sobre um plano de suaves e rítmicos movimentos, realçado por generoso decote, irrompem dois simétricos e cônicos belos montes, tendo, de entremeio, um estreito vale que lhes ressalta o especial contorno;

A pele jovial e macia, de cor variando de jambo a noz moscada, revestindo graciosamente um corpo de relevo harmônico e realçando o equilíbrio das formas bem definidas – um todo escultural;

O despojamento do vestuário, com as partes desnudas sugerindo quão interessantes podem ser as partes pudendas razoavelmente encobertas e protegidas de inconfessáveis desejos.

A velhice não nos torna imunes à beleza, longe disso, o que nos impõe é certo apaziguamento.” [José Eduardo Agualuza, em Milagrário pessoal].

Dela aproximou-se e, como bom cavalheiro – o que realmente era –, além de profundo conhecedor da alma humana – a feminina mais ainda –, cumprimentou-a com solenidade.

E o cidadão do mundo percebeu, muito além da validez do seu aprendizado nas cálidas areias das edênicas praias mediterrâneas e fluminenses, a inteligência e a sensibilidade da mulher genuinamente universal.

Afetuosas correspondências e plurais intercâmbios de vivências, permitiram-se, na exultante jovialidade das suas existências e na firmeza de seus humanos propósitos, o entrelaçamento simbiótico de uma auspiciosa relação de amizade que, então, se estabeleceu entre eles. [Embora afirmem e reafirmem os estudiosos do comportamento humano, no quesito relacionamento interpessoal, ser de todo improvável que se mantenha sempre como tal a amizade entre um homem e uma mulher. Neste caso, arrisco-me em apostar minhas parcas fichas na exceção que, certamente, confirmará a regra.].

E o tempo se vai,

como sói acontecer,

no compasso ininterrupto da fina e branca areia

que escoa na ampulheta da vida.

Sob o mesmo encantamento da feliz descoberta, reencontraram-se incontáveis vezes, pelo mundo afora, em cidades várias, as mesmas que sempre povoam os sonhos de altos voos de todos nós – os simples mortais.

Simpáticos aos movimentos das minorias marginais,

empunharam bandeiras de causas humanitárias,

abraçaram campanhas vanguardistas em defesa de inalienáveis direitos do humano ser,

combateram preconceitos de toda ordem e de todas as línguas e de todos os matizes,

enfrentaram, com louvável denodo, o inconformismo e a intolerância, atitudes extremas que se alimentam de sentimentos abjetos, torpes, ignominiosos, afervorados por vendilhões de templos erguidos em louvor a deuses do opróbrio.

Até que, naquela madrugada de vida pulsante, o lobo solitário, incomodado com a alegria e a felicidade dos seus iguais, travestindo-se de um deus cruel, irascível e sanguinolento, despeja sua ira covarde em projéteis letais que interrompem sonhos…

E, no chão frio do dancing, entre muitos corpos que ainda sangram os ora definitivamente adormecidos projetos de vida, jazem, lado a lado, o destemido e irrequieto cidadão do mundo e a bela e inteligente mulher genuinamente universal.

Quanto custa a vida para quem banaliza a morte? Simplesmente nada?!

Quando e onde se dará a próxima estupidez humana?!

Quantos inocentes fenecerão no próximo absurdo?!

Ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.” [Renato Russo].

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.