Há algum tempo escrevi neste espaço sobre o livro “Villa Air Bel”, da canadense Rosemary Sullivan. O nome deriva do lugar (um casarão), nos arredores de Marselha, que serviu de abrigo para um seleto grupo de intelectuais, artistas, cientistas, escritores e políticos de diferentes países nos dramáticos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, particularmente o período da ocupação da cidade de Paris pelos nazistas. Muito embora pontuado pelos horrores sob cuja ameaça viviam os fugitivos, o livro narra com notável elegância e estilo a curiosa convivência de gente importante para a inteligência universal, como Marc Chagall, André Breton e Max Ernst, Hannah Arendt, entre outros.
A autora, poeta de prestígio no Canadá (nasceu em Montreal, Québec), narra com suavidade e fina capacidade de observação o que foram esses anos terríveis, o que torna agradável a leitura do livro. Nesse sentido, pois, é que traça com sutileza o perfil psicológico das personalidades envolvidas, nunca assumindo posições ideológicas que possam, minimamente, redimensionar a importância de uns sobre outros, exceto quando se reporta à americana Mary Jayne Gold, sobre quem falarei mais adiante. No mais, Sullivan mantém a distância devida a um relato que mais documenta a história real que se propõe a erigir mitos. Nada se perde de mais significativo, ainda quando se volta para circunstâncias já muito exploradas em livros, filmes e outros registros históricos, a exemplo do suicídio do filósofo Walter Benjamin, já bem próximo de ultrapassar a fronteira entre França e Espanha, destino perseguido pelos inimigos do Terceiro Reich.
No quarto capítulo, intitulado “A Herdeira”, é quando Sullivan discorre sobre a figura incontornável de Mary Jayne Gold, a herdeira que dá nome ao capítulo. Filha de um magnata da manufatura, Egbert Gold, cuja fortuna lhe proporciona uma vida de luxo e impensáveis aventuras, Mary Jayne alça uma posição de destaque no livro. Mas a razão disso, curiosamente, não se prende ao brilho pessoal de uma mulher culta, rica e dotada de uma beleza física estonteante. É aqui que a personagem (real, destaque-se), agiganta-se, assumindo um papel de tal modo relevante que sobrepuja o de outros “monstros” da cultura dita moderna, todos, como ela, envolvidos em debates impagáveis, confrontos violentos e paixões clandestinas. Explico mais adiante o destaque assumido por Gold.
Esses fatos, chego aonde quero, tornam o desenrolar desses acontecimentos reais algo para além de históricos, tomando-se o termo em seu sentido referencial, elevando-se a um nível de complexidade e sedução que beira o que existe de mais representativo da grande literatura. É ir ao streaming e assistir, na Netflix, à maravilhosa série “Transatlântico”, uma das mais deslumbrantes realizações do cinema contemporâneo, com roteiro adaptado do romance The Flight Portfolio, escrito por Julie Orringer (não traduzido para o português) e conferir o que afirmo.
É aula de cinema, com apurado senso estético, fotografia esmerada e interpretações irretocáveis, com destaque para a atriz Gillian Jacobs (Mary Jayne) e Lucas Englander (Albert Hirschmann)*, e numeroso elenco de grandes nomes do cinema na atualidade.
A história é lindamente narrada, alternando casos passionais, situações aterrorizantes vividas pelos fugitivos, exposição crítica dos fundamentos ideológicos do fascismo e uma gama de elementos dramáticos que remetem aos tempos de hoje, sob ameaça inconteste de avanços da extrema direita fascista, corrupta e sanguinária que toma conta de diferentes países, inclusive o Brasil.
É nessa perspectiva, portanto, que se deve exaltar a figura de Mary Jayne Gold, quer no livro de Rosemary Sullivan quer no imperdível “Transatlântico”, a série da Netiflix que você não deve deixar de ver. Nela, aliás, o relato sobre a personagem, como no livro, é naturalmente mais enfático, e apaixonante, na medida em que se pode conhecer melhor uma mulher incomum, voltada para ajudar as vítimas de um regime de terror, a que destina, com heroísmo invulgar, a sua ação solidária: sua riqueza financeira, seu aguçado senso de humanismo, sua valentia pessoal, sem jamais perder, por isso, a irresistível feminilidade que lhe confere um poder de sedução impressionante ao longo de toda a narrativa fílmica. Pena não ser recomendável, a essa altura, incorrer em spoiler para dizer o final de sua belíssima trajetória. Recomendo.
*Sobre Albert Hirschmann, economista de extração liberal, ouvi, recentemente, de José George Bezerra, estudioso da FGV, uma verdadeira aula de “humanomia”, uma economia calcada em elementos culturais, números e conceitos filosóficos que abrangem da vida à Arte.